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Poesia palaciana em 1516, é publicada uma coletânea que reúne textos poéticos compostos durante os reinados de d. afonso V, d. João ii e d. Manuel, ou seja, de meados do século xv até àquele ano. Trata-se, pois, de um riquíssimo testemunho da poesia cultivada na época. Como Garcia de Resende, poeta e cronista, é o compilador desta coletânea, a obra é conhecida por Cancioneiro Geral de Garcia de Resende. após a época de d. dinis, a produção lírica trovadoresca começa a decair e dá lugar a um novo tipo de poesia. Para esta mudança contribuem a falta de mecenato, a forma de comunicação das produções poéticas, que passa de oral a escrita, e a independência do português em relação ao galego. d. dinis já havia proclamado o português como língua oficial do reino, o que obrigava todos os documentos a serem escritos nesta língua em vez de o serem em latim. d. João i, ao instalar a corte em Lisboa, contribuiu, de forma definitiva, para a separação dos dois idiomas. O Cancioneiro Geral revela-nos que desde meados do século XV se cultiva este novo tipo de poesia, com um novo discurso e novas formas. Recuperam-se temas que vêm de trás, dando-lhes um tratamento inovador, e introduzem-se assuntos não tratados até ao momento. Objetivos da obra Como é afirmado no prólogo, a finalidade principal desta compilação é reunir em volume a poesia dispersa da época, de forma a não se perder no tempo. Segundo Garcia de Resende, os feitos e as façanhas dos Portugueses caíam no esquecimento. O autor referia-se aos recentes descobrimentos marítimos, aos reinados ilustres dos monarcas portugueses, aos atos de bravura militar e a outros momentos grandes do passado e do presente, que ainda não estavam devidamente expressos em texto poético. no prólogo é afirmado ainda que o Cancioneiro, ao divulgar a poesia, recorria às funções que esta podia ter: exaltar a doutrina cristã, promover o entretenimento e o convívio na corte e dar voz à crítica de costumes. Os poemas documentam várias facetas da vida palaciana. O acervo poético reunido nesta obra tinha ainda o propósito de constituir um estímulo que encorajasse novos autores a escrever. de forma subtil, Garcia de Resende sugere que os poetas nacionais deviam avançar para a redação de um poema grandioso que celebrasse os altos feitos dos Portugueses, isto é, uma epopeia. apesar disto, as composições históricas e épicas do Cancioneiro são escassas. Página de rosto da edição de 1516 do Cancioneiro Geral. Os poetas do Cancioneiro e o ambiente de corte O Cancioneiro Geral já é um livro impresso. Contém cerca de 880 composições de aproximadamente 300 autores, figuras da corte, que escreviam para os demais cortesãos. Os grandes poetas da segunda metade do século XV e de inícios do XVi estão representados na coletânea: João Roiz de Castel-Branco, diogo Brandão, d. Francisco de Portugal, conhecido como conde de Vimioso, o próprio Garcia de Resende, o também dramaturgo Gil Vicente, Sá de Miranda e Bernardim Ribeiro. estes últimos dois, influenciados pelo Renascimento, cultivarão posteriormente novas formas. anrique da Mota merece referência por ser o autor de breves composições dramáticas. estes poetas frequentavam o paço real e aí apresentavam os seus poemas, que, em alguns casos, eram compostos de forma improvisada. daí que a ideia de entretenimento presida Página inicial do Cancioneiro Geral. 224 ENTRE NÓS E AS PALAVRAS • Português • 10.o ano • Material fotocopiável • © Santillana 565039 223-258 U4.indd 224 12/03/15 20:07
à feitura de muitas das composições, que mais não são do que divertimentos literários para animar o convívio entre os cortesãos. aliás, o conceito de jogo está presente no processo de criação de várias peças literárias do Cancioneiro. alguns poemas são obras coletivas, pois resultam de despiques e argumentações entre poetas, como o poema «O cuidar e o suspirar», que abre a coletânea; outros são expandidos com ajudas e réplicas de outros autores. Tal significa que a poesia resulta não só do convívio e da socialização entre os cortesãos como da interação entre eles. Pelo testemunho que nos dá, o Cancioneiro oferece-nos um mosaico nítido da vida da corte. Os temas Tal como acontece com a lírica trovadoresca, os poemas do Cancioneiro Geral versam, sobretudo, duas linhas temáticas que dominam a obra: o amor e os assuntos de carácter satírico e burlesco. ainda assim, outros tópicos marcam presença no volume. O amor revela-se como o tema mais fecundo da poesia do Cancioneiro e é cantado nas suas várias facetas. na lírica amorosa voltamos a encontrar o queixume que decorre do sentimento não correspondido e a desorientação causada pela paixão ou pela partida da amada. no entanto, também se alude aos prazeres e às alegrias dos afetos. O galanteio encontra nesta poesia o veículo ideal, mas, frequentemente, o sentimento amoroso formulado revela ser convencional, pouco genuíno e pautado pelo exagero. O discurso engenhoso, fortemente retórico, denuncia a artificialidade do amor confessado, que pode glosar aspetos tão diferentes como a carnalidade do desejo ou a admiração espiritual. Os poemas satíricos conferem graciosidade e humor à coletânea de Resende. a vida da corte e as suas figuras são o alvo principal da crítica mordaz. Troça-se do comportamento de alguns cortesãos, do seu vestuário, dos defeitos físicos, da ignorância, da poesia que outros escrevem e dos caprichos das mulheres. em termos concretos, são objeto de sarcasmo tanto as ceroulas de d. Manuel de noronha ou as barbas de d. Rodrigo como a hipocrisia dos clérigos e a avareza dos judeus. Os mecanismos que desencadeiam o cómico percorrem as várias escalas do decoro, chegando a recorrer-se à brejeirice, e fundam-se, por vezes, em situações encenadas. Se a sátira poderá corrigir os costumes, a poesia didática e moralizante oferece ao leitor/ouvinte conselhos e ensinamentos práticos para o seu quotidiano. nestes poemas, de cariz edificante, divaga-se frequentemente sobre a dissolução dos costumes, a vida estéril e a maledicência da corte. não é estranho, pois, encontrarmos ensinamentos práticos, como em «Ouve, vê e cala», de d. João Manuel, que dá conselhos «para quem quiser viver em paz»; ou indicações sobre como evitar a podridão moral da vida da corte: a solução, segundo João Roiz de Castel-Branco, é ir viver para a província. O ambiente de corte e de criação coletiva não terá propiciado uma abundante produção de poesia religiosa. de facto, o número de composições desta temática presente no Cancioneiro revela-se pouco expressivo. ainda assim, destacam-se as peças líricas de diogo Brandão e de Luís anriques dedicadas à Virgem. Os poetas do Cancioneiro, na maioria pertencentes à nobreza, não passam ao lado dos factos históricos da sua época e dos feitos realizados por Portugueses. assim, estão presentes no volume poemas de assunto histórico e épico, que glosam as ambições expansionistas e militares do monarca e dos nobres. Luís anriques celebra a conquista de azamor e diogo Brandão, as descobertas marítimas. Outros acontecimentos da época, menos grandiosos, ficaram registados em verso, como as festas nupciais do infante d. afonso em 1490, o desfecho fatídico da Batalha de alfarrobeira e a morte de d. inês de Castro, esta em trovas da autoria de Garcia de Resende. Página do Cancioneiro Geral. Batalha. Miniatura conservada na Biblioteca nacional de França, Paris. 225 ENTRE NÓS E AS PALAVRAS • Português • 10.o ano • Material fotocopiável • © Santillana 565039 223-258 U4.indd 225 12/03/15 20:07
BIOGRAFIA Garcia de Resende (1470?-1536) Nascido numa família nobre, Garcia de Resende destacou-se pela diversidade de interesses que teve e pelos cargos que ocupou na corte: além de poeta, cronista, músico, arquiteto e desenhador, desempenhou funções diplomáticas e administrativas ao serviço da coroa portuguesa. No reinado de D. João II, foi «moço de escrevaninha», isto é, secretário particular do rei, que lhe concedeu várias benesses. Após a morte do monarca, Resende redige a crónica Vida e Feitos de D. João II, que tira partido da convivência próxima que manteve com o rei. Assumiu ainda cargos de confiança de Estado nas cortes de D. Manuel e de D. João III. Da sua atividade intelectual e literária, destacam-se a organização do Cancioneiro Geral e a elaboração de uma crónica rimada de factos do seu tempo que recebeu o título de Miscelânea. Garcia de Resende. Géneros e formas abandonada que estava a cantiga paralelística, opta-se, na segunda metade do século XV, por novos géneros e formas poéticas. entre as composições menos extensas, distinguem-se os poemas com mote dos sem mote. O mote era um breve conjunto de versos que encerrava a ideia a desenvolver pelos poetas nas estrofes seguintes, designadas por glosas ou voltas. Com mote, temos o vilancete e a cantiga, que diferem na sua estrutura. O vilancete é constituído por um mote de dois ou três versos e por uma ou mais glosas de sete versos, cujo último verso repete, com ou sem variantes, o último verso do mote. a cantiga é constituída por um mote mais extenso, de quatro ou cinco versos, e por apenas uma glosa de oito a dez versos, cujo último verso repete, também, com ou sem variantes, o último verso do mote. Sem mote, temos a esparsa e a trova. ambas se distinguem pela estrutura. a esparsa é constituída por uma única estrofe, designada por copla, de oito a dezasseis versos, e a trova é mais livre, podendo ser desenvolvida em várias estrofes, também chamadas coplas. encontramos poemas narrativos, mais longos, nos quais são relatados acontecimentos em verso, como «Fingimento de amores», de diogo Brandão, em que o poeta visita em sonho o inferno. ensaiam-se tentativas de escrever textos épicos sobre feitos nacionais. novidade é a presença de composições em verso que consistem em esboços de tipo dramático, para representações teatrais. Tais são os casos dos divertidíssimos «Lamentação do clérigo», em que um religioso chora uma pipa de vinho que se partiu, e «as trovas a uma mula», ambos de anrique da Mota. Outras composições dialogadas, em que dois ou mais poetas argumentam e debatem um tema, à semelhança da tenção da lírica trovadoresca, como o poema «O cuidar e o suspirar», afiguram-se igualmente como esboços de textos dramáticos. em termos de metro, a medida mais recorrente é a redondilha maior, verso de sete sílabas métricas, embora a redondilha menor, verso de cinco sílabas métricas, tenha alguma expressão. São estas as formas métricas que melhor se coadunam com a arte do vilancete, da cantiga, da esparsa e da trova. Às redondilhas maior e menor dá-se o nome de medida velha; a medida nova, a que corresponde o decassílabo, surgirá no Renascimento, por influência da literatura italiana. estão ainda presentes no Cancioneiro poemas com outras formas métricas. O estilo O estilo da poesia do Cancioneiro revela um grau de elaboração superior à simplicidade das cantigas de amigo e mesmo ao discurso complexo das cantigas de amor. O poeta procura agora ostentar o seu virtuosismo no uso da linguagem. num discurso fortemente retórico, procura exibir o engenho e a argúcia do raciocínio. a brevidade do vilancete, 226 ENTRE NÓS E AS PALAVRAS • Português • 10.o ano • Material fotocopiável • © Santillana 565039 223-258 U4.indd 226 12/03/15 20:07
da cantiga ou da esparsa não inviabiliza que se produza uma pequena peça de filigrana retórica. atente-se nas antíteses, nos oxímoros, nas hipérboles, nos trocadilhos, nas metáforas e nas aliterações que se encontram nos poemas de João Roiz de Castel-Branco e de Bernardim Ribeiro transcritos no fim desta página. em relação ao convencionalismo e à aparente falta de espontaneidade da poesia do Cancioneiro, pode dizer-se que, mesmo para falar de amor, o discurso afigura-se muito assente numa argumentação racional e em malabarismos de ideias e conceitos. as noções de argumentação e de argúcia são centrais num tipo de composições estruturadas, que se concebem, por vezes, em forma de despique ou de processo judiciário. Influências numa época em que o intercâmbio cultural foi relançado, a principal influência na poesia do Cancioneiro Geral vem da literatura castelhana. Garcia de Resende inspirou-se no Cancionero general de Hernando del Castillo, editado em 1511, como modelo para a coletânea portuguesa. Outro livro que lhe serviu de referência foi o Cancionero de Baena, organizado entre 1426 e 1430. a matriz poética castelhana manifestou-se ainda na escolha de formas métricas e na presença de vários poemas em castelhano. nas peças da coletânea de Garcia de Resende encontramos composições com alusões à obra de Petrarca e de dante, ainda que a influência da poesia e da cultura italianas só mais tarde se faça sentir mais fortemente em Portugal. ao primeiro, dever-se-ão a conceção espiritual de amor e a idealização da mulher, na sua beleza e na sua dimensão moral, ideias que surgem em poemas do conde de Vimioso. ao segundo, a noção do amor após a morte, nas trovas de Garcia de Resende à morte de inês de Castro, e as descrições do inferno em «Fingimento de amores», de diogo Brandão. a cultura clássica revela-se já antes do Renascimento numa fonte de motivos e ideias literárias, com alusões às mitologias grega e latina, como, a título de exemplo, as referências a Cupido, Prosérpina e Plutão no referido poema de diogo Brandão, e em poemas com excertos das Heróides, de Ovídio, traduzidos do latim por João Luís de Lucena e João Roiz Sá. Cancionero general de Hernando del Castillo (Biblioteca nacional de espanha). LEITURA Estes dois poemas do Cancioneiro Geral são exemplificativos da estrutura do vilancete e da cantiga. O primeiro é um vilancete cujo tema versa a falta de harmonia e a divisão interior do sujeito poético; o segundo é uma cantiga de tema amoroso. Antre mim mesmo e mim não sei que s’alevantou, que tão meu imigo sou. Uns tempos com grand’engano vivi eu mesmo comigo, agora no mor perigo se me descobre o mor dano. Caro custa um desengano, e pois m’este não matou, quão caro que me custou! De mim me sou feito alheio: antr’o cuidado e cuidado está um mal derramado, que por mal grande me veio. Nova dor, novo receio foi este que me tomou: assi me tem, assi estou. Senhora, partem tão tristes meus olhos por vós, meu bem, que nunca tão tristes vistes outros nenhuns por ninguém. Tão tristes, tão saudosos, tão doentes da partida, tão cansados, tão chorosos, da morte mais desejosos cem mil vezes que da vida. Partem tão tristes, os tristes, tão fora de esperar bem que nunca tão tristes vistes outros nenhuns por ninguém. Última gravura do Cancioneiro Geral. JOÃO ROIZDE CASTEL-BRANCO BERNARDIM RIBEIRO 227 ENTRE NÓS E AS PALAVRAS • Português • 10.o ano • Material fotocopiável • © Santillana 565039 223-258 U4.indd 227 12/03/15 20:07
Poesia renascentista influenciados pelo movimento renascentista que nascera em itália e se difundira pela europa, os poetas portugueses aderiram a essa estética literária que chegava ao nosso país. a partir do segundo quartel do século xvi, os autores começam a cultivar novos temas, novas formas e novos motivos. a literatura greco-latina e a literatura italiana medieval e renascentista são as duas fontes de inspiração e o modelo dos poetas portugueses. Se já havia referências clássicas no Cancioneiro Geral deGarcia de Resende, é depois da sua viagem a itália que Sá de Miranda introduz em Portugal as ideias do movimento renascentista. na escrita das suas composições, os poetas nacionais começam a trabalhar novos géneros e novas formas líricas de origem clássica ou italiana, por exemplo, o soneto, a ode, a écloga, a elegia e o epigrama. a noção renascentista de imitação e de cumprimento das regras leva a que se sigam os princípios dos géneros com rigor, por exemplo, um soneto deve ter duas quadras e dois tercetos e um esquema rimático definido. as personagens da literatura clássica começam a surgir na poesia portuguesa: deuses, heróis e pastores. a linguagem literária é adaptada aos modelos estrangeiros. Pratica-se a sintaxe latina, com a ordem das palavras diferente da do português, e recorre-se a um vocabulário erudito. Se Sá de Miranda é o grande pioneiro da Renascença em Portugal, Camões será o seu expoente máximo. no entanto, a maioria dos poetas renascentistas não nega a herança literária nacional. Camões, Sá de Miranda e Bernardim Ribeiro fazem a articulação entre a lírica tradicional, cultivando composições como a cantiga, o vilancete, a esparsa, e a poesia do Renascimento, com os seus novos géneros e novas formas. O poeta italiano Petrarca foi uma das principais referências do Renascimento português. Sá de Miranda (1487-1558) Francisco de Sá de Miranda nasce em Coimbra, onde terá feito os seus primeiros estudos. Por volta de 1505 frequenta a universidade, em Lisboa, vindo a obter uma graduação em Leis. É na capital que marca presença na vida da corte, onde dá a conhecer os seus poemas e granjeia o reconhecimento e a amizade de nobres, poetas, como Bernardim Ribeiro e antónio Ferreira, e do próprio rei d. Manuel i. alguns dos seus poemas fazem parte do Cancioneiro Geral de Garcia de Resende. em 1521 empreende uma viagem a itália, que dura cinco anos. Lê a poesia de dante e Petrarca, conhece mais de perto alguns poetas italianos, como Sannazzaro e Bembo, e contacta com as ideias filosóficas do Humanismo. na viagem de regresso a Portugal, permanece algum tempo em espanha, onde terá travado conhecimento com os poetas Garcilaso de la Vega e Boscán, que então procuravam aculturar as ideias literárias renascentistas à poesia espanhola. a partir de 1526, já em Portugal, será Sá de Miranda que divulgará no meio literário nacional os conceitos e formas da literatura italiana. a sua ação sente-se mais fortemente na difusão dos temas clássicos recuperados pelo Humanismo. Por estes motivos, atribui-se a Sá de Miranda um papel decisivo na introdução do Renascimento em Portugal. durante algum tempo ainda reside em Lisboa e frequenta o paço. no entanto, cansado da dissolução dos costumes e da frivolidade da vida da corte, retira-se para terras de entre douro e Minho, onde se casará, em 1530, e viverá o resto dos seus dias. Fixa residência em duas igrejas e, mais tarde, em Quinta da Tapada. Cultivando a terra e a poesia, aí terá Sá de Miranda. 228 ENTRE NÓS E AS PALAVRAS • Português • 10.o ano • Material fotocopiável • © Santillana 565039 223-258 U4.indd 228 12/03/15 20:07
o período mais fecundo da sua produção literária. Os anos finais da sua vida são marcados pela dor e pela amargura: o seu filho primogénito faleceu em Ceuta, em 1553, e, dois anos depois, a sua mulher. Consola-o o reconhecimento literário que os poetas do seu tempo lhe demonstram. Sá de Miranda morre em 1558, em Quinta da Tapada. Formas, temas e linguagem da poesia de Sá de Miranda O percurso literário de Sá de Miranda pode ser dividido em duas fases. a primeira compreende a poesia palaciana, apresentada na corte e recolhida, em parte, no Cancioneiro Geral deGarcia de Resende (1516). neste período, o poeta experimentou as formas tradicionais do vilancete, da cantiga, da esparsa e da trova em redondilhas. O tema então privilegiado é o amor. esta primeira fase termina em 1521, com o início da viagem a itália, que lhe dará a conhecer os subgéneros poéticos e as estruturas estróficas que usará na segunda fase: o soneto, a écloga, a canção, a elegia, a carta, em verso, e as estrofes de três e oito versos: o terceto de dante e a oitava. Compõe sonetos, elegias e éclogas em decassílabos, o metro italiano. O visionarismo poético de Sá de Miranda manifestou-se no seu trabalho de conciliar a tradição literária portuguesa com a inovação italiana que pretendia introduzir no país. Com este intuito, versa novas formas literárias e trabalha a língua, adaptando-a a esta nova maneira de escrever poesia. É ainda visível a influência da literatura espanhola de matriz renascentista, sobretudo da poesia de Garcilaso e de Boscán: vários poemas seus são mesmo redigidos em castelhano. a lição renascentista marcou a poesia de Sá de Miranda, não só pela influência da literatura italiana, mas também pela recuperação de temas, modelos e ideias da cultura greco-latina. nos sonetos, explora o tema da mudança e do fluir inexorável do tempo («O sol é grande, caem co’a calma as aves») e do amor petrarquista de matriz neoplatónica, em que a mulher é idealizada nas suas virtudes físicas, morais e intelectuais («não sei qu’em vós mais vejo» e «Quando eu, senhora, em vós os olhos ponho»). nas éclogas e nas cartas, aborda assuntos morais e cívicos, refletindo sobre a sociedade do seu tempo e criticando a dissolução dos costumes. Segundo os princípios do género, nas éclogas, após uma introdução, dois pastores debatem um ou mais assuntos em ambiente bucólico, ou seja, campestre. Sá de Miranda utiliza este tipo de composições para denunciar vícios da sociedade urbana: a corrupção administrativa, a prepotência dos poderosos, o materialismo (na écloga «Basto»); e o desprezo pelos humildes, o roubo, a falta de sinceridade (em «Montano»). em relação a estes comportamentos, os pastores têm uma atitude de reprovação e assumem outros ideais: defendem as lições filosóficas dos clássicos de regresso à natureza, de harmonia com o mundo natural, de uma vida mediana e serena (a aurea mediocritas de Horácio) e exaltam a dignificação do Homem, a dignitas hominis dos Humanistas. nas cartas, o poeta retoma a crítica à sociedade e denuncia a hipocrisia e a cobiça, os abusos dos que exerciam cargos judiciais, os clérigos desonestos («Carta a d. João iii»), o materialismo desmedido, a opulência e o abandono dos campos («Carta a antónio Pereira»). no que diz respeito à linguagem, salienta-se o estilo conciso e elíptico, pautado pela sintaxe de cariz latino, com o recurso à anástrofe, ao hipérbato e ao anacoluto. O léxico é por vezes erudito, com o registo de alguns arcaísmos. Bernardim Ribeiro (1482?-1552?) Pouco se conhece com rigor sobre a vida de Bernardim Ribeiro, já que são escassos os seus dados biográficos. durante muito tempo, circularam hipóteses fantasistas, entretanto dadas como falsas. do que se sabe, Bernardim terá nascido na vila alentejana do Torrão e frequentado a universidade, em Lisboa, provavelmente entre 1507 e 1511. Conviveu literariamente na corte e os seus poemas foram recolhidos no Cancioneiro Geral deGarcia de Resende. Travou amizade com poetas da sua geração, como Sá de Miranda e antónio Ferreira. Tem-se especulado sobre a eventual ida de Bernardim Ribeiro a itália, aquando da viagem de Sá de Miranda, na companhia deste, mas tal não está comprovado. Bernardim Ribeiro. 229 ENTRE NÓS E AS PALAVRAS • Português • 10.o ano • Material fotocopiável • © Santillana 565039 223-258 U4.indd 229 12/03/15 20:07
em 1524, foi nomeado escrivão da câmara de d. João iii. aderiu ao movimento renascentista e participou na renovação da lírica portuguesa, compondo, sobretudo, éclogas de influência clássica. É autor da novela sentimental Menina e Moça, que foi publicada originalmente em 1554 num volume em que constam também as suas éclogas. não se sabe com segurança quando e como morreu, mas alguns estudiosos aceitam que terá terminado os seus dias na sua terra natal. Temática e características da poesia de Bernardim Ribeiro Bernardim Ribeiro começa por escrever composições de lírica tradicional elaboradas em medida velha: vilancetes, cantigas e esparsas. algumas figuram no Cancioneiro Geral. nesses poemas trabalha já, de forma ainda ingénua e convencional, os temas que serão dominantes na sua obra: o amor, com as suas agruras, e a divisão do eu. Revela, nesta fase, um estilo afetado, pautado pelo jogo de palavras, a antítese e o oxímoro, que, mais tarde, viria a desenvolver. influenciado pelos novos modelos, escreve cinco éclogas, que eram modernamente cultivadas por Sannazzaro e Boccaccio, mas adapta-lhes o verso tradicional, a redondilha. ao contrário das éclogas de Sá de Miranda, que versavam questões morais e cívicas, as de Bernardim Ribeiro centram-se no tema amoroso e são vistas quase como dramas sentimentais. na «Écloga i», ou «Écloga de Pérsio e Fauno», o pastor Pérsio é vítima do sofrimento passional. Fauno, que representa a razão e a ponderação, dialoga com Pérsio e tenta consolá-lo, apelando à prudência. no entanto, o desequilíbrio emocional de Pérsio e a força avassaladora do amor arrastam-no para uma angústia extrema e para um fatalismo que parece irreversível. na «Écloga ii», ou «Écloga de Jano e Franco», o primeiro enamora-se de Joana, e este amor, irrealizável, vai conduzi-lo a uma situação de profundo desespero. Franco procura, apesar disso, confortá-lo. ambos são poemas de uma grande emotividade que traduzem a aspiração irrealizável do amor. Comparando com o tratamento dado ao amor na lírica tradicional, a expressão do sofrimento tornou-se mais aguda e devastadora nestas composições. a atitude das personagens, que revelam uma grande sensibilidade e se revolvem na dor, é de um profundo pessimismo. esse pessimismo chega ao fatalismo quando elas se apercebem de que a angústia e a desilusão se revelam inultrapassáveis, aceitando submeter-se à força do destino. O estilo das éclogas tem um carácter arcaizante e afetado na sintaxe. as antíteses e paradoxos são usados para exprimir a divisão interior do sujeito e a sua dor emocional. Bucólicas de Virgílio. Manuscrito do século xv. António Ferreira (1528-1569) Outro vulto maior da literatura e do pensamento renascentistas em Portugal foi antónio Ferreira. nasceu em Lisboa, mas foi em Coimbra que fez os seus estudos, frequentando a universidade e licenciando-se em direito Canónico. Chega a exercer, temporariamente, as funções de lente na universidade. na cidade do Mondego, onde se discutem as ideias humanistas e lecionam intelectuais como andré de Resende, andré Gouveia e George Buchanan, Ferreira contacta com as ideias do movimento renascentista, que marcarão a sua obra literária, o seu pensamento e o seu modo de estar no mundo. ainda estudante na universidade, começa a escrever. Terá, então, composto e levado à cena a sua obra maior, a tragédia Castro. aliás, a maior parte da sua obra, lírica e dramática, foi produzida neste período, em Coimbra. após os seus estudos superiores, segue a carreira jurídica e, em 1567, assume em Lisboa o cargo de desembargador da Casa do Cível, que desempenha até ao ano da sua morte. Faleceu em 1569, vítima da grande peste. O seu filho reúne os seus poemas e a tragédia Castro, publicando-os, postumamente (1598), num volume intitulado Poemas Lusitanos. Considera-se que, pelas condições excecionais dos seus estudos, efetuados quando a influência do Humanismo estava no seu auge em Portugal, antónio Ferreira teve a mais completa educação humanística dos poetas portugueses quinhentistas. 230 ENTRE NÓS E AS PALAVRAS • Português • 10.o ano • Material fotocopiável • © Santillana 565039 223-258 U4.indd 230 12/03/15 20:07
Géneros e temas da poesia de António Ferreira antónio Ferreira desenvolveu uma ação decisiva na implementação do Renascimento em Portugal, consolidando as inovações literárias. Se a produção dramática de Ferreira foi importante na renovação do teatro português, a lírica não tem menor valor. ao longo da sua curta vida, cultivou grande parte das formas poéticas de matriz clássica e italiana. Trabalhou a écloga, a elegia, a carta e o soneto e foi o pioneiro, em Portugal, na composição da ode e do epigrama. avesso às formas da tradição peninsular, segue, igualmente, os modelos dos poetas da literatura clássica e da nova literatura italiana. as suas éclogas recebem influência de Virgílio, as odes, de Horácio, e os sonetos, de Petrarca. na temática e ideário da sua obra lírica, Ferreira advoga uma poética assente na «imitação» dos clássicos. imitar não significa aqui plagiar, mas seguir um modelo e tentar superá-lo na riqueza da expressão e na reelaboração dos temas. nas cartas, defende o mérito e a importância não só cultural mas também cívica do cultivo do saber e da literatura. esta atitude está relacionada com a função didática da arte e da literatura, que, além de deleitar, deve oferecer ensinamentos, tal como defendia o escritor latino Horácio: delectare et docere. na sua obra, o autor glorifica ainda os valores, os feitos e as figuras relevantes do País, destinando-lhes cartas, odes ou elegias. Portugal é, portanto, um tema maior da sua lírica, tendo antónio Ferreira exortado os escritores do seu tempo a compor uma epopeia. este revela-se também um crítico consciencioso dos males do reino e, no bom espírito humanista, aponta o dedo à cobiça, ao materialismo e à barbárie da guerra. Frontispício de Poemas lusitanos de antónio Ferreira. Outros poetas renascentistas intelectual de sólida cultura clássica, Pêro de andrade Caminha encarnou o espírito renascentista ao abordar na sua lírica temas do Humanismo e glosar quase todas as formas poéticas clássicas e italianas. Terá sido ele o primeiro a cultivar a sextilha hendecassilábica. ainda assim, Caminha versa também as formas peninsulares, por vezes em castelhano, com recurso à redondilha. O seu estilo é equilibrado e harmonioso. diogo Bernardes foi um poeta de inspiração camoniana que cantou a natureza e a beleza da sua terra (Ponte de Lima) e do rio que a banha. Revelou a sua influência renascentista, a nível do conteúdo, ao versar temas como a mudança, a idealização da mulher e o amor petrarquista, e a nível da forma, na serenidade da sua poesia e na retórica do seu estilo. Cristóvão Falcão é um poeta bucólico a quem se deve a écloga «Crisfal». a questão da autoria deste poema tem alimentado um longo debate: houve quem duvidasse que «Crisfal» tivesse sido escrita por Cristóvão Falcão e atribuísse a composição a Bernardim Ribeiro. Crê-se que, de facto, o autor é Falcão. a dúvida justifica-se: o estilo e a temática do poema aproximam-se bastante da linguagem e dos temas versados por Bernardim nas suas obras. Outros poetas deste período que têm algum relevo na literatura portuguesa são Francisco Sá de Meneses, andré Falcão de Resende e Frei agostinho da Cruz. SABIA QUE… A má fama de Pêro de Andrade Caminha Pêro de Andrade Caminha (1520/30-1589) teve a sua fama denegrida por alimentar inimizades com Camões e por ter testemunhado no processo da Inquisição contra Damião de Góis, humanista de grande cultura, que viveu vinte e dois anos no estrangeiro. Este foi chamado por D. João III para ocupar as funções de mestre do príncipe, que não chegou a exercer, e de guarda-mor da Torre do Tombo. 231 ENTRE NÓS E AS PALAVRAS • Português • 10.o ano • Material fotocopiável • © Santillana 565039 223-258 U4.indd 231 12/03/15 20:07
Luís de Camões: obra lírica e dramática Além de ter composto a obra maior da literatura portuguesa, Os Lusíadas, Luís de Camões é também o autor de três comédias e de uma extensa obra lírica de qualidade admirável. Temáticas da lírica de Camões Duas temáticas dominam a lírica de Camões: o amor e o desconcerto do mundo. Cada uma delas se concretiza em vários assuntos, mas ambas sintetizam a diversidade de questões que são tratadas na poesia camoniana: o sofrimento amoroso, a separação da mulher amada, a problemática do destino, do tempo e da mudança ou as questões sociais. O amor A poesia amorosa de Camões é atravessada por uma tensão entre dois polos, dois tipos de sentimento contraditórios. Essa tensão tem como forças opostas uma profunda ansiedade e uma angústia por não conseguir conciliar essa oposição. As duas conceções de amor que se digladiam podem ser identificadas como o amor espiritual e o amor sensual. Quando este sentimento é tratado na lírica camoniana, testemunhamos a pulsão e o anseio por uma forma espiritualizada de amor, que é caracterizada como mais pura e mais elevada («Este amor que vos tenho, limpo e puro»). Ora, este amor espiritual é concebido com base na conceção de Petrarca, que cantava a sua afeição deslumbrada por uma mulher idealizada, Laura. Dante antecipou esta conceção petrarquista de amor na figura de Beatriz. Este amor idealizado é, na sua teoria, influenciado pela ideia platónica de que o verdadeiro amor, perfeito e ideal, só pode ser alcançado numa realidade superior, seja o mundo inteligível de Platão, seja o Céu cristão — Laura já tinha morrido quando Petrarca a cantou. Trata-se, pois, de um amor concebido em termos abstratos e sobre o qual se escreve de forma teórica, racionalizando o sentimento («Transforma-se o amador na cousa amada»). Cultivar este amor, que vive da contemplação do ser amado, de conceitos e de ideias, permite ao poeta aperfeiçoar-se como ser humano e elevar-se espiritual e moralmente. Apesar de se tratar de um amor espiritual e intelectualizado, tal não significa que a mulher não está presente nestes poemas. Como ser idealizado, angelical, de contornos divinos, ela é uma figura incorpórea e nunca é descrita em traços bem definidos: dela temos apenas algumas impressões. Representa um ideal físico, moral e intelectual. Sabemos que tem os cabelos louros, a tez branca, que a sua pose é serena e a sua alegria grave. É, de facto, uma mulher que está ausente e que o poeta não alcança. Em tensão com este amor espiritual surge o amor sensual, marcado pelo desejo e pelo prazer. Nos poemas de Camões, materializa-se a celebração do corpo da mulher, no ato de sedução e em outras situações marcadas pela mundanidade. Este tipo de amor entra em choque com o elevado sentimento (o «alto amor»). Tal facto desencadeia no eu poético um sentimento de culpa e um conflito interior porque, embora aspire fortemente ao amor espiritual, não consegue desapegar-se deste amor sensual, pautado pelo desejo. Renunciar-lhe parece-lhe humanamente impossível e o sujeito poético acaba por exprimir ansiedade e frustração. Luís de Camões. 232 ENTRE NÓS E AS PALAVRAS • Português • 10.o ano • Material fotocopiável • © Santillana 565039 223-258.indd 232 17/03/15 14:52
a figura feminina que encontramos nos momentos de amor sensual é a de uma mulher que revela a sua beleza. descrita com mais precisão e rigor do que a mulher idealizada do amor platónico, a personagem surge em ambientes naturais, exibindo a sensualidade do seu corpo, como acontece, por exemplo, no episódio da ilha dos amores d’Os Lusíadas. a natureza, normalmente luxuriante, que circunda a mulher, encontra-se em sintonia com a sua beleza e adensa a voluptuosidade dos amantes. na Ode Xi, Tétis banha-se nas águas, ondulantes como o seu corpo, perante o olhar embevecido de Peleu. Será possível encontrar uma solução para este conflito entre o amor espiritual, idealizado, e o amor sensual? Os poemas camonianos procuram uma conciliação entre estes opostos. Se a primeira solução é abdicar da carnalidade do amor, a ideia não se concretiza face à incontrolável pulsão do desejo. Tentam-se outras formas de harmonia entre os dois polos de amor, mas nenhuma resulta. a conciliação revela-se inexequível e a impossibilidade sentida pelo poeta de alcançar o amor pleno traz-lhe frustração e angústia. O desconcerto do mundo a temática do desconcerto do mundo engloba todo o tipo de questões e está relacionada com a desordem das coisas, o desajuste que reina na Terra. É um problema de tal forma profundo que assume a forma do motivo medieval do «mundo às avessas». O antagonismo entre o ideal e a prática pertence ao domínio social, religioso e político, mas é igualmente vivido pelo poeta. Como se manifesta o tema na lírica de Camões? a poesia camoniana denuncia o desajuste que existe entre os princípios e os valores (cristãos, éticos, políticos, etc.) e a prática, a realidade quotidiana. a ordem dos valores encontra-se invertida. Como se lê na esparsa «ao desconcerto do mundo», a atribuição de recompensas e castigos na sociedade está invertida: premeiam-se os maus e não se recompensam os bons. Claro está que esta desordem se aplica também ao amor, que, sendo o mais elevado dos sentimentos, se revela irrealizável. a angústia e a ansiedade do poeta não se devem somente ao facto de este constatar que o desconcerto existe no mundo que o rodeia, mas também, e sobretudo, ao facto de sentir que a sua vida sofre estruturalmente com este desajuste. a desordem é vivida interiormente: o amor é irrealizável, a sua vida revela-se tumultuosa e difícil, a desorientação (moral, religiosa, etc.) é grande. Temas como o tempo, que traz agruras, e a mudança, que se opera sempre para pior, marcam presença nesta poesia. LITERATURA E ARTE Camões José Leitão de Barros realizou, em 1946, o filme Camões. Trata-se de uma longa-metragem a preto-e-branco que passa para o grande ecrã a vida do poeta. A biografia de Camões apresentada segue as teses de José Maria Rodrigues e de Afonso Lopes Vieira, que aceitam como verdade algumas ideias ainda não comprovadas: por exemplo, segundo o filme, Camões teria sido degredado para a Índia porque ambicionava o amor da Infanta D. Maria, filha de D. Manuel. Cartaz do filme Camões, de Leitão de Barros (Cinemateca Portuguesa). 233 ENTRE NÓS E AS PALAVRAS • Português • 10.o ano • Material fotocopiável • © Santillana 565039 223-258 U4.indd 233 12/03/15 20:07
estes problemas deixam o poeta numa situação de conflito interior, angústia e desilusão. Vendo-se assim, acaba por responsabilizar o destino pela desordem que o subjuga. no entanto, reconhece que não é uma vítima inocente da Fortuna (do Fado): consciente da vida sem regras que leva, acaba por ver no seu infortúnio a punição para os erros que cometeu: «erros meus, má fortuna, amor ardente». no sentido de procurar uma solução para o problema, o poeta aponta a renúncia, a abdicação do mundo desconcertado. esta renúncia, de natureza estóica, assumiria, como em Sá de Miranda, a forma de fuga para uma vida campestre, numa espécie de abdicação do mundo associada à aurea mediocritas de Horácio. Mas o plano nunca é empreendido porque ele sabe que não resolveria o problema. Aspetos da linguagem e do estilo da poesia da lírica de Camões Reconhece-se no estilo da lírica de Camões uma graciosidade e uma capacidade expressiva que a tornam verdadeiramente genial. É sobretudo nos poemas de medida velha, na canção e no soneto que o poeta conseguiu alcançar um elevado grau de elegância e expressividade. Para tal contribuem o ritmo e a harmonia que imprime nos seus versos. exemplos disto são os sonetos «aquela triste e leda madrugada» e «um mover de olhos brando e piedoso». a melodia dos versos consegue-se com a ajuda da aliteração, da assonância e da onomatopeia («nem corre claro rio nem ferve fonte»), mas também da alteração da ordem direta das palavras na frase. deste modo, o poeta procura que as palavras e os sons confirmem a expressão das ideias. em algumas composições, é visível o recurso a uma linguagem figurada, conotativa, para exprimir sentidos e matizes de sentido que a linguagem literal não alcança. Para tal, recorre-se à metáfora, à hipérbole, à personificação, à antítese ou ao oxímoro, como no soneto «amor é fogo que arde sem se ver», em que o amor é identificado metaforicamente e os oxímoros que se sucedem traduzem a intensidade e as contradições do sentimento. associado a este traço estilístico está a linguagem fortemente retórica que Camões utiliza nos seus poemas, na qual, além dos recursos estilísticos já referidos, se integram a perífrase, a metonímia, o hipérbato e a anástrofe e a expressividade do adjetivo. Os sonetos são disso bom exemplo. a tendência retórica da poesia camoniana está relacionada com o carácter erudito da linguagem usada. Para este, contribui a utilização de latinismos e da frase complexa que, com a alteração da ordem direta das palavras pelo uso do hipérbato e da anástrofe, recorda a sintaxe latina, tal como acontece n’Os Lusíadas. Botticelli, O Nascimento de Vénus. 234 ENTRE NÓS E AS PALAVRAS • Português • 10.o ano • Material fotocopiável • © Santillana 565039 223-258 U4.indd 234 12/03/15 20:07
PARA SABER MAIS A mulher petrarquista Petrarca é determinante na construção de uma ideia de descrição de beleza feminina que vai influenciar toda a literatura europeia. O ideal de beleza definido pelo poeta, que originou a expressão «mulher petrarquista», corresponde a uma figura de tez clara, com as faces rosadas e o cabelo claro. Os lábios destacavam-se pelo tom rosa, deixando entrever os dentes brancos. A figura da mulher petrarquista representava também um ideal moral e intelectual feminino. As comédias de Luís de Camões além de ter cultivado a epopeia e a poesia lírica, Camões produziu textos dramáticos. escreveu três comédias, Anfitriões, El-Rei Seleuco e Filodemo, que ocupam um lugar à parte no teatro português quinhentista. estas peças foram redigidas na sua juventude, numa fase em que a escrita de Camões não tinha ainda amadurecido. no que diz respeito à sua estrutura e aos processos dramáticos usados, Filodemo e el-Rei Seleuco são textos que se filiam na tradição do teatro de Gil Vicente. O primeiro, que nos recorda as peças Rubena ou D. Duardos, de Vicente, é uma adaptação teatral de um enredo romanesco. a trama assenta numa situação de equívoco e de desconhecimento da identidade que se soluciona no fim. dois irmãos, Filodemo e Florimena, de ascendência aristocrática mas que se julgam erradamente de origem viloa, apaixonam-se respetivamente por dionisa e Venadoro, também eles irmãos e nobres. Se inicialmente a diferença social parece ser um impedimento à união dos pares amorosos, tudo se resolve no fim ao saber-se que Filodemo e Florimena têm raízes aristocráticas. a peça El-Rei Seleuco parte de uma situação bizarra: o príncipe antíoco apaixona-se pela jovem mulher de seu pai e sua madrasta. Para não perder o amor do filho, o monarca abdica da sua esposa e entrega-a ao seu filho. a aproximação destas peças à obra vicentina faz-se pela utilização de tipos, embora neste caso sejam tipos psicológicos. Anfitriões é uma comédia de modelo clássico que se inspira na peça homónima do comediógrafo romano Plauto. na essência, o texto mostra-nos omo o deus Júpiter assumiu a forma de um humano, anfitrião, para o poder substituir no leito conjugal e amar a sua mulher, alcmena, quando este estivesse ausente. Trata-se, portanto, de uma comédia de enganos. Os três textos partilham o tema que os anima, o amor. no fundo, é como se Camões dramatizasse as questões que trata de outra forma na lírica. Reencontramos nas peças as duas formas de amor em tensão. em Anfitriões, Júpiter dá voz ao seu violento desejo para seduzir vilmente alcmena. Já Filodemo começa por advogar um «amor passivo» (platónico), contrastando com a posição do seu licencioso amigo, duriano, que defende o amor ativo e sensual. Plauto. 235 ENTRE NÓS E AS PALAVRAS • Português • 10.o ano • Material fotocopiável • © Santillana 565039 223-258 U4.indd 235 12/03/15 20:07