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Auto da Compadecida. I. O auto – de Gil Vicente a João Cabral • Auto é uma designação genérica para textos poéticos (normalmente em redondilhas ) criados para representações teatrais em fins da Idade Média.
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Auto da Compadecida I. O auto – de Gil Vicente a João Cabral • Auto é uma designação genérica para textos poéticos (normalmente em redondilhas ) criados para representações teatrais em fins da Idade Média. • A maioria dos autos tem caráter religioso, embora a obra de Gil Vicente nos ofereça vários exemplos de temática profana e satírica - a farsa - sempre com preocupações moralizantes. • No Brasil, especialmente no Nordeste, em pleno Séc.XX encontramos textos notáveis que revelam influência medieval, entre eles o que estudaremos.
II - O estilo do autor • linguagem através da qual o texto alcança sua forma final e definitiva. • Teatro- representação por atores. • O autor não propõe nenhuma atitude de linguagem oral que seja regionalista. • O autor busca encontrar uma expressão para todos as personagens: as diferenças nos registros da fala são estabelecidas pelos atores. • O texto serve de caminho para uma via oral de expressão.
III- A obra e sua estrutura. • escrito com base em romances e histórias populares do NE. • A peça não se apresenta dividida em atos – O ator dá liberdade ao encenador e ao diretor. • O autor concebe a peça como uma representação dentro de outra representação; • É bom deixar claro que seu teatro é mais aproximado dos espetáculos de circo e da tradição popular do que do teatro moderno. • O cenário fica a critério do diretor: pode ser uma igreja, o céu, o inferno, etc...
IV- Personagens • Todas as personagens do Auto da Compadecida revelam dimensões alegóricas. • A alegoria, grosso modo, pode ser entendida como a concretização de qualidades ou entidades que são abstratas, por meio de imagens – figuras e pessoas – ou de idéias. • A alegoria funciona como uma maneira de “materializar” aspectos morais, ideais ou ficcionais. • Cabe salientar que grande parte das personagens não apresenta nomes próprios, são tipos. • Mesmo as que são nomeadas, como o padre, funcionam como “figuras alegóricas”, por meio das quais são satirizadas e criticadas as diversas classes que compõem os estratos sociais.
João Grilo • João Grilo é o protagonista: atua como criador/deflagrador de todas as situações que se desenvolvem na peça. • Representa a figura típica do “quengo” – nordestino sabido –, embora analfabeto e amarelo (pálido, desnutrido). • Habituado a sobreviver e a viver a partir de artimanhas e pequenos golpes, trabalha na padaria. • Sua grande queixa é não ter tido tratamento adequado dos patrões (o padeiro e sua mulher): quando adoeceu, fora ignorado por eles, que tratavam o cachorro com bife passado na manteiga. • João Grilo não é ladrão, mas defende-se como pode. • Por isso quer se vingar dos patrões que o ignoraram durante a doença e quer enganar o padre, de quem não gosta. • Porém, não planeja suas ações, age conforme a situação se lhe apresenta. • Não tem uma alma ruim, pois, na hora final, perdoa o mal que lhe fizeram.
Chicó • Companheiro constante de João Grilo, que o torna participante e cúmplice de suas artimanhas. • Chicó, amigo leal, envolve-se nessas artimanhas do amigo mais por solidariedade do que por convicção própria. • Chicó é um mentiroso incorrigível. • Entretanto, se mesmo Jesus (Manuel) afirma, na cena do julgamento, que está de olho nele por causa das histórias que conta, suas mentiras não prejudicam ninguém. • Padre João, o Bispo e o Sacristão • Essas personagens encarnam a simonia – corrupção clerical em oposição ao Frade, figura simples e bonachona, que não participa do círculo de cobiça dos demais religiosos. • Além da simonia, ao padre, ao sacristão e ao bispo pairam várias acusações, como a soberba, a leviandade, a subserviência às autoridades, a arrogância, a velhacaria, a preguiça e o roubo à igreja.
Antônio Morais • Com foros de nobreza, orgulhoso de suas origens ibéricas, representa a aristocracia dos senhores de terra – resquício do coronelismo nordestino. • É um fazendeiro às antigas, cônscio de sua ociosidade senhorial, por isso despreza aqueles proprietários que trabalham. • Sua autoridade decorre de seu poder econômico, que faz com que a ele se curvem os políticos, os sacerdotes e, claro, a ralé. • Padeiro e sua Mulher • Essas personagens encarnam a exploração da burguesia aos desfavorecidos, como é o caso de João Grilo. • O casal é satirizado pelo exagero de traços: a submissão do marido contrastando com a prepotência da mulher; a dedicação da esposa aos animais, suas infidelidades conjugais até mesmo com desclassificados sociais, como Chicó; a exploração dos empregados em oposição à superproteção ao cachorro; e a evidência de que o casal fica unido apenas por medo da solidão.
Severino do Aracaju e o Cangaceiro • Embora seja um personagem cruel, sádico e violento, os atos de Severino e de seu comparsa são justificados. • Severino se viu enlouquecido, quando a polícia matou-lhe a família. • Tem fortes princípios, como o de não matar sem motivos, mas só para roubar, para garantir seu sustento. • Além disso, recrimina o assanhamento da mulher do padeiro: suas ações, portanto, ganham foro no plano moral. • O Encourado e o Demônio • Essas personagens simbolizam o instrumento da justiça, representada por Manuel. • Manuel • É o Cristo negro que tanta polêmica causou na época em que a peça fora escrita e, de certa forma ainda causa. • A intenção é mesmo de despertar comentários, chamando a atenção para o fato de que, para ele, “tanto faz um branco como um preto”. • Justo e onisciente, atua como julgador final dos vícios – velhacaria, simonia, arrogância, preguiça –, do preconceito e do falso testemunho.
A Compadecida • A Nossa Senhora invocada por João Grilo, será aquela que lhe dará a segunda oportunidade da vida. • Funciona efetivamente como mediadora, plena de misericórdia, intervindo a favor de quem nela crê, como o protagonista. • Nas palavras de Carlos Newton Júnior, Suassana “constrói um painel da sociedade rural nordestina, no qual membros de todas as classes sociais podem ser contemplados”. • Ao ter, como protagonista da trama, um homem do povo, “o autor não só toma posição ao lado dos desfavorecidos, como se mostra coerente com o projeto estético que vem desenvolvendo desde suas primeiras peças” • O Auto da Compadecida prioriza, portanto, “a situação daqueles que se encontram em posição inferior na ordem social. Por isso o protagonista não se identifica com aqueles que detêm posições de mando”. • Alinhada á ideologia dos folhetos de cordel, a peça focaliza “a sociedade do ponto de vista dos desprivilegiados”
V - Enredo • É evidente a presença de João Grilo em todas as situações, e mais importante, é fundamental. • A peça gira em torno dele, do ponto de vista estrutural. • Quem é João? É uma figura típica do nordestino sabido, analfabeto e amarelo. • Habituado a sobreviver e a viver a partir de expedientes, trabalha na padaria, vive em desconforto e a miséria é sua companheira. • Sua fé nas artimanhas que cria, reflete, no fundo, uma forma de crença arraigada na proteção que recebe, embora sem saber, da Compadecida.
“João Grilo - Ah isso é comigo. Vou fazer um chamado especial, em verso. Garanto que ela vem, querem ver? (recitando) Valha-me Nossa Senhora, / Mãe de Deus de Nazaré! A vaca mansa dá leite, / A braba dá quando quer. A mansa dá sossegada, / A braba levanta o pé. Já fui barco, fui navio, / Mas hoje sou escaler. Já fui menino, fui homem, / Só me falta ser mulher. Encourado – Vá vendo a falta de respeito, viu? João Grilo – Falta de respeito nada, rapaz! Isso é o versinho de Canário Pardo que minha mãe cantava para eu dormir. Isso tem nada de falta de respeito! Já fui barco, fui navio, / Mas hoje sou escaler. Já fui menino, fui homem, / Só me falta ser mulher. Valha-me Nossa Senhora, / Mãe de Deus de Nazaré. “
VI- Problemática da obra. “Ao escrever esta peça, onde combate o mundanismo, praga de sua igreja, o autor quis ser representado por um palhaço, para indicar que sabe, mais do que ninguém, que sua alma é um velho catre, cheio de insensatez e de solércia. Ele não tinha o direito de tocar nesse tema, mas ousou fazê-lo, baseado no espírito popular de sua gente, porque acredita que esse povo sofre, é um povo salvo e tem direito a certas intimidades.” “Que bem precisada anda disso. Saia e vá rezar lá fora. Muito bem, com toda essa gente morta, o espetáculo continua e terão oportunidade de assistir seu julgamento. Espero que todos os presentes aproveitem os ensinamentos desta peça e reformem suas vidas, se bem que eu tenha certeza de que todos os que estão aqui são uns verdadeiros santos, praticamente da virtude, do amor a Deus e ao próximo, sem maldade, sem mesquinhez, incapazes de julgar e de falar mal dos outros, generosos, sem avareza, ótimos patrões, excelentes empregados, sóbrios, castos e pacientes. E basta, se bem que seja pouco.”
A função cênica do Palhaço – porta voz do autor – é abrir e fechar o espetáculo. • O Palhaço tem também a função de descrever, de forma antecipada e didática, o clima da peça, apresentar atores, assim como despertar a curiosidade da platéia sobre o desfecho e adverti-la para que mantenha distanciamento crítico e consciência crítica. • O Palhaço irá esboçar, enfim, a finalidade primordial do espetáculo que é a intenção moralizante e crítica do autor, respaldada na religiosidade cristã, católica. • No Auto da Compadecida, portanto, percebe-se uma função metateatral (metalingüística), exercida pelo Palhaço, que conduz o espetáculo à maneira circense: “Ele se dirige ao público, anunciando o que está por vir e fazendo comentários. Na sua qualidade, ele não se mistura à ação da peça. Aparece, sim, no prólogo do início de cada ato e no epílogo. Porém, em uma de suas intervenções torna-se também ator, ou melhor, curinga, pois participa da cena do enterro de João Grilo”. • Os personagens simbolizam pecados (maiores ou menores), que recebem o direito ao julgamento, que gozam do livre-arbítrio e que são ou não condenados.
VII- Conclusão • Como proposição estética, o Auto da Compadecida procura corporificar as seguintes noções: • A criação artística, o teatro em particular, deve levar o povo, a cultura desse povo a ele mesmo. • Daí o circo, seu picadeiro e a representação dentro da representação. • Menos que essa realidade regional e cultural de um povo, o que importa é criar um projeto que defina idéias e concepções universais (as da igreja, no caso) com o fim de conscientizar o público. • Por esse motivo a realidade regional nordestina é, no caso, instrumento de uma idéia e não um fim em si mesma. • Criar um texto teatral é, antes de tudo, criá-lo para uma encenação, daí a absoluta liberdade que o autor dá para qualquer modalidade de encenação.
No Auto da Compadecida, enfim, Ariano reescreve e recontextualiza gêneros medievos em produtos culturais populares nordestinos, questionando procedimentos de exclusão social, política e religiosa, por meio de personagens de extração popular. • Dessa forma, poder-se-ia concluir que o autor trabalha dentro de um enfoque eminentemente regionalista. • Entretanto, cabe observar que o próprio Ariano não propõe, nas indicações que servem de base para a representação, nenhuma atitude expressiva que seja amplamente regionalista, nordestina. • Apenas quatro personagens ligam-se a determinantes regionais: João Grilo, Chico, Severino do Aracaju e o Encourado que, como justifica o próprio autor, “segundo uma crença do sertão do Nordeste, é um homem muito moreno, que se veste como um vaqueiro”.