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Tradição, traição e tradução

livro ensaio

angela126
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Tradição, traição e tradução

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  1. fernando maués literatura tradicional e recepção letrada no di çã tra o tração tra i du ção de garrett romanceiro

  2. fernando maués tradição traição tradução literatura tradicional e recepção letrada no romanceiro de garrett

  3. Sumário NOTA PRÉVIA..........................................................................................................................6 INTRODUÇÃO: TRADIÇÃO, TRAIÇÃO E TRADUÇÃO..............................................................8 I. TRADIÇÃO.......................................................................................................................15 1.OPOPULAR, O ORAL, O TRADICIONAL..........................................................................16 2.OROMANCE TRADICIONAL..........................................................................................21 Características estruturais e temáticas.........................................................................................................24 Classificação..............................................................................................................................................26 Origens......................................................................................................................................................27 Compilações...............................................................................................................................................29 3.COMO VIVE UM ROMANCE............................................................................................32 Poética da oralidade...................................................................................................................................32 Poética do romanceiro ................................................................................................................................35 II. TRAIÇÃO.........................................................................................................................39 4.GARRETT, O ROMANTISMO E OS ROMANCES................................................................40 O jovem Garrett........................................................................................................................................41 O exílio no mundo romântico.....................................................................................................................44 O nascimento do Romanceiro: um projeto estético e temático........................................................................47 5.OS PAPELINHOS ............................................................................................................53 O manuscrito FL 1-2-1-37......................................................................................................................53 Uns tais “papelinhos”...............................................................................................................................55 A descrição do manuscrito .........................................................................................................................59 As fases no manuscrito..............................................................................................................................61 6.OROMANCEIRO............................................................................................................66 7.“ROSALINDA”................................................................................................................71 Ritmo........................................................................................................................................................74 Articulações...............................................................................................................................................76 Atores, arquétipos, significados..................................................................................................................82 III. TRADUÇÃO...................................................................................................................88 8.TRADUÇÃO EM “ROSALINDA”.......................................................................................89 Música no papel........................................................................................................................................89 Arredondando personagens ........................................................................................................................94 Articulação...............................................................................................................................................98 Significação............................................................................................................................................. 104 9.A VIDA NÃO ACABOU, MUDOU SÓ................................................................................. 107 BIBLIOGRAFIA.......................................................................................................................116 ANEXO1-QUADRO ANALÍTICO DO ROMANCE “ROSALINDA”......................................... 127 ANEXO2-QUADRO COMPARATIVO DE ROMANCES..........................................................131

  4. Para Valéria, é claro... “porque sentindo ela, leixei de sentir a mim...” E para Márcia, cujo entusiasmo “almou meu ser” e buscou torná-lo “em dia e letra escrupuloso e fundo”

  5. Nota Prévia Este livro é, com modificações, a dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo em outubro de 2001. O trabalho pretendia refletir acerca da maneira pela qual os autores letrados da primeira metade do século XIX se debruçaram sobre a matéria popular tradicional, para o que abordou-se, especificamente, a composição do Romanceiro de Almeida Garrett e sua relação com o gênero romance tradicional. Nesta edição, optamos por verter todas as citações para o português. Além disso, alguns trechos foram reordenados e novidades incorporadas (tanto bibliográficas quanto aquelas referentes à descoberta, em 2004, de mais de 400 páginas manuscritas de volumes inéditos do Romanceiro), tudo em vista de tornar a leitura mais atual, fluente e acessível mesmo a um público menos especializado, mas interessado nas relações entre cultura tradicional e aquela “de arte”, letrada. No mais, o trabalho manteve a estrutura tripartida decorrente da necessidade de estabelecer os critérios de construção e valor de dois universos culturais diversos – a poesia oral tradicional e a romântica letrada – antes de avançar sobre a relação entre eles. Na primeira parte (tradição), apresenta-se a literatura oral tradicional com suas especificidades e modo de vida; na segunda (traição), trata-se de Garrett e sua inserção na cultura letrada do século XIX, além da posição da cultura popular – em especial do Romanceiro – neste contexto; na terceira (tradução), enfim, reflete-se acerca da ação do poeta culto sobre a matéria tradicional. A realização desse estudo reflete a ajuda de muita gente, a começar pela minha “senhor”, Valéria e minha “magistra”, Márcia Mongelli, às quais dedico o livro. Agradeço a meus pais, Fernando e Cenilda, e irmãos – Aline, Flávio e Marcus – que incentivaram sempre, sem estranhar, a curiosidade compulsiva e a “mania” de

  6. ler e pensar; aos meus sobrinhos Lucas, Amanda, Flávia, Júlia e Fernando, que me dão esperança no futuro; aos amigos Márcio, Michel, Paulo, Raul e Risonete pelos conselhos, textos, incentivos e, sobretudo, pela folgança; ao Orlando, ao Ronald e ao Guillermo pelo teto, pela mesa, pelas conversas, enfim, pelo carinho; aos professores Márcia Abreu, Lílian Lopondo e Pedro Garcez Girardhi pelas valiosas observações; à FAPESP, que financiou a pesquisa com bolsas de Iniciação Científica e Mestrado; enfim, aos meus filhos, João e Felipe, que são o motivo de tudo. Fernando Maués Belém, 2004 7

  7. Introdução Tradição, traição e tradução Comecei a pensar que aquelas rudes e antiqüíssimas rapsódias nossas continham um fundo excelente e lindíssima poesia nacional, e que podiam e deviam ser aproveitadas. [...] Recorri à tradição. Almeida Garrett. Romanceiro ob certo ponto de vista, a diferença entre tradição e traição depende S apenas da duração. O termo latino clássico traditio (-onis) aparece em Tito Lívio e Cícero com o sentido de “doação, entrega”; para Arnóbio é “transmissão, tradição”. Agostinho, mais tarde, o tomaria como “entrega, traição”. Para Tertuliano, o traditor (-oris) é “o que transmite, ensina”; para Tácito, é o “traidor”1. Dois termos, com significados aparentemente tão distintos, partilhavam o mesmo significante. O campo semântico de “entregar”, mesmo na atualidade, é amplo. Pode-se “entregar” a sabedoria, um modo de vida, uma forma de arte, uma crença e a isso chamamos tradição; Judas, porém, “entregou” Jesus e Ganelão assim o fez com 1 SARAIVA, F. R. dos Santos. Novíssimo dicionário latino-português: etimológico, prosódico, histórico, geográfico, mitológico, biográfico, etc. 10 ed. Rio de Janeiro: Garnier, 1993, p. 1213; Dicionário latim- portuguez: etymológico, prosódico e orthográphico. 11 ed. corr. e augm. Rio de Janeiro / Lisboa: Francisco Alves / Bertrand, [s.d.], p. 855.

  8. Rolando – são traidores. Nas origens, retirada a perspectiva moral ou valorativa, tradição e traição se identificam naquilo que têm de “entrega”. Antonio Geraldo da Cunha, porém, chama atenção para a questão da duração suscitada acima. De acordo com o filólogo, o significante de “traição” era trāditĭō (-ōnĭs) e aquele de “tradição” era trādĭtĭō(-ōnĭs). Termos formados por consoantes idênticas e vogais de mesmo timbre, ponto de articulação e de mesma altura, apresentam uma diferença, sutil: a duração da pronúncia do primeiro i dos vocábulos. Na “tradição”, temos a longa duração; na traição, a breve2. Na passagem do latim clássico para o vulgar e deste para o vernáculo, as diferenças de duração transformam-se, progressivamente, em diferenças de abertura – vogais abertas, vogais fechadas – e os termos supracitados divergem. Trādĭtĭōnĭs vai resultar, no italiano arcaico, em tradigione3; no moderno, “traidor” é traditore. Na península ibérica, segue-se a regra da queda do d intervocálico4 e o resultado, que já aparece, pelo menos, no século XIII, é traiçon, de que vai derivar, enfim, “traição”. No caso de trāditĭōnĭs, o d intervocálico se mantém devido a um fenômeno fonético: o deslocamento da tonicidade do termo para o primeiro i, resultando “tradição” – o que é, provavelmente, reforçado por uma questão semântica: a vantagem de distinguir fonologicamente os dois significados. Permita-se aqui um pequeno jogo analógico entre o nível fonético e o semântico: o tempo da tradição é o da longa duração, daquilo que se entrega, lega, transmite, ensina através das gerações; a traição é a abreviação daquele tempo, a descontinuidade, o “deixar de ser fiel”, a falha, a deturpação. 2 CUNHA, Antônio Geraldo. Dicionário etimológico Nova Fronteira da língua portuguesa. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982, p. 780. A obra de Saraiva supracitada indica apenas um significante, trādĭtĭō (-ōnis), com i breve, para os dois significados. 3 NASCENTES, Antenor. Dicionário etimológico da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1932, p. 785. 4 Acerca do vocalismo, ver: ILARI, Rodolfo. Lingüística românica. 2 ed. São Paulo: Ática, 1997, p. 72 e ss; COUTINHO, Ismael de Lima. Gramática histórica. 7 ed. rev. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1976, p. 101 e ss. Sobre “formas divergentes” e a queda da consoante d (trādĭtĭō > traição), ver: Ibid., p. 198 e ss; 113. 9

  9. No início do segundo quartel do século XIX, quando inicia a publicação de seus “romances recriados da tradição”5, o poeta português Almeida Garrett imagina estar privilegiando o universo tradicional, da longa duração. Acredita “ver com que maravilhoso enfeitavam suas ficções e seus quadros poéticos nossos bis e trisavós”6. Pensa estar revelando a poesia “mais antiga de que tradição nos chegou”7. Não importavam os retoques que, aqui e ali, visavam a reformar a poesia “informe e mutilada pela rudeza das mãos e memórias por onde passou”8 – assim haviam feito Walter Scott, Percy, Burns, mestres imediatos do poeta no exílio. Sob sua própria óptica e a de seus contemporâneos, o autor recebia e entregava o legado dos ancestrais encarnado no povo português, dava seguimento à tradição. Meio século mais tarde, porém, a emergência de um pensamento cientificista provocaria uma revisão no estatuto dos romances de Garrett. Teófilo Braga foi o primeiro a denunciar a “traição”. Na Introdução de seu Romanceiro Geral, escreve que Garrett apresentou um trabalho excellente sob o ponto de vista artístico, pelo gosto de Percy, mas não merece a absoluta confiança dos que quizerem surprehender a alma do povo na elaboração da sua poesia.9 Carolina Michaëlis de Vasconcellos também acusa a “ilusão” criada “pelos romances que Almeida Garrett havia retocado com gosto tão delicado”10. É sintomático que, nas “Investigações bibliográphicas, biográphicas e histórico- litterárias” que compõem o segundo volume de seu Cancioneiro da Ajuda, a mesma autora comente a presença de “reminiscências e motivos soltos” do romance de Tristão a partir de romanceiros portugueses – Romanceiro popular e Romanceiro do 5 GARRETT, Almeida. Adozinda. Londres: Bossey & Son, 1828. O romance de que se trata aqui é o “romance tradicional”, gênero poético popular que não deve ser confundido com o romance em prosa moderno, sedimentado no século XIX. 6 GARRETT, Almeida. Romanceiro. Lisboa: Estampa, 1983, v. 1, p. 55. Ver, na Bibliografia, as várias edições do Romanceiro de Garrett. Para as citações do poema “Rosalinda”, será utilizada a última edição em vida do autor, de 1853; para os demais romances, textos introdutórios ou apêndices, a edição mais acessível, de 1983, em três volumes. Um histórico completo das edições do Romanceiro é apresentado no capítulo 6. 7 GARRETT, Romanceiro, op. cit., v.1, p. 59. 8 Ibid., p. 61. 9 BRAGA, Teófilo. Romanceiro Geral. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1867, p. vii (grifo nosso). 10 VASCONCELLOS, Carolina Michaëlis de. Romances velhos em Portugal: estudos sobre o romanceiro peninsular. Porto: Lello & Irmão, [s.d.], p. 12. 10

  10. Archipelago Açoriano de T. Braga; Romanceiro da Madeira, de Azevedo – sem mencionar o de Garrett11. Mais tarde, no Brasil, ouve-se Câmara Cascudo dizer, no seu Dicionário do folclore brasileiro, que Garrett, infelizmente, recebendo várias cópias de trechos de romances, reconstruía o modelo perdido com o material agenciado, e não sabemos o que é tradicional e o que é realmente a colaboração garrettiana.12 No primeiro parágrafo da carta de 1824 a Duarte Lessa que serviria de Prefácio a Adozinda, em 1828, Garrett já previa críticas: “Tanto melhor para quem gostar de dizer mal, que não lhe faltará de quê”13. O motivo das objeções esperadas por Garrett, no entanto, era diverso, para não dizer oposto – a rudeza dos versos – daquele que alimentou a crítica do fim do século XIX – a delicadeza dos versos. Este é um problema central no estudo do Romanceiro: saber o que há nele de recuperação, de continuação do modelo tradicional; o que há de ruptura, inovação em relação ao mesmo modelo. Se Teófilo Braga, Câmara Cascudo e Carolina Michaëllis apontam para a “traição” de Garrett, Athaide Oliveira, nos primeiros anos do século XX, escreve que “Garrett excedeu a todos pela nítida compreensão do gênio do nosso povo distribuído na sua poesia”14. O etnólogo Viegas Guerreiro afirma que “de modo geral, Garrett não transforma tanto quanto se tem dito a dicção popular; por vezes quase se limita a pôr uns versos por outros”15. É oportuno, aqui, parafrasear Pessoa: “Cada um me contou as suas razões. Ambos tinham razão”16 – mas não toda a razão. O objetivo deste trabalho é aferir o que há de razão em uns e em outros: o Romanceiro de Garrett é digno representante da tradição popular, de uma cultura de 11Cancioneiro da Ajuda. Ed. crítica de Carolina Michaëlis de Vasconcellos. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1990, v. 2, p. 506 (Reimpressão de Halle, 1904, acrescentada de um prefácio de Ivo de Castro e do glossário das cantigas). 12 CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. 9 ed. Rio de janeiro: Ediouro, [s.d.], p. 789 (grifo nosso). 13 GARRETT, Romanceiro, op. cit, v. 1, 1983, p. 53. 14 OLIVEIRA, Francisco Xavier d’Athaide. Romanceiro e cancioneiro do Algarve. Porto: Typographia Universal, 1905, p. xi. 15 GUERREIRO, M. Viegas. Para a história da literatura popular portuguesa. Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1983, p. 74. 16 PESSOA, Fernando. Obra poética. 9 ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986, p. 54. 11

  11. longa duração? Ou as modificações do poeta resultam em ruptura, em algo diverso, um cancioneiro culto, por exemplo? Garrett estava consciente do trabalho de manipulação do material que recolhia – e aqui entra o terceiro elemento citado no título deste trabalho. Na breve introdução à versão inglesa que John Adamson fez do “Bernal Francês”, Garrett escreve: Mais para fazer aceito ao comum dos leitores um estudo e um gosto que infalivelmente há-de regenerar a nossa poesia e com ela nossa língua e literatura toda, revertendo-a à simplicidade bela de sua origem natural, de que tão afastadas andam pela imitação pesada e contrafeita dos estrangeiros, mais para esse do que para nenhum outro fim literário, traduzi em linguagem e modos menos rudos o “Bernal-Francês”.17 O poeta enfatiza, com grifo inclusive, que fizera a tradução dos romances populares. “Tradução” deriva de trādūctĭŏ(-ōnĭs), substantivo latino apelativo feminino que indica “ação de levar” ou “de transferir de uma ordem a outra”18. O termo se identifica aos outros dois já mencionados – tradição e traição – no que possui, ele também, de “entrega”. Aquele que traduz carrega algo de “uma ordem”, que pode ser um idioma, um nível de linguagem, um meio cultural e o entrega a “outra” ordem análoga. Neste sentido, propicia a propagação, através do tempo e do espaço, de tal objeto, vivifica-o, fomenta sua continuidade. Por outro lado, a “transferência” não se dá sem alguma mediação que, em maior ou menor medida, transforma o objeto, trai – não existe à toa o ditado italiano “tradutore, traditore”. Garrett assume, sem pruridos, a opção de “traduzir” os cantares “rudos” do povo para a língua e a sensibilidade dos salões da sociedade letrada do XIX, nesta que, nas palavras do próprio poeta, “talvez possa chamar-se com propriedade a ‘tradução literária do romance primitivo’, ou mais exactamente ainda ‘a tradução de sala’”19. 17 GARRETT, Almeida. Obras de Almeida Garrett. Porto: Lello & Irmão, 1963, v. 2, p. 789 (grifo do autor). 18 SARAIVA, Novíssimo dicionário latino, op. cit, p. 1213. 19 GARRETT, Obras, op. cit., v. 2, 789. 12

  12. Tradição, traição, tradução. Conceitos diversos que se encontram imbricados no primeiro romanceiro em língua portuguesa de que se tem notícia. Novamente: o que há de continuação? O que há de inovação no Romanceiro de Garrett? A resposta para esse problema demanda algumas reflexões prévias: primeiro, acerca do que é a “tradição” da qual se serviu o poeta; em seguida, sobre o “traidor”: Garrett, suas motivações, seu contexto; depois, a respeito da “tradução”: o Romanceiro. Enfim, conhecidas “tradição” e “tradução”, é possível observar os mecanismos utilizados pelo poeta na “passagem de uma ordem à outra”. Tais reflexões estarão aqui assentadas na análise de um romance, “Rosalinda”, publicado pela primeira vez em 1843, no primeiro volume do Romanceiro20. O poema tem sua fábula relacionada ao ciclo carolíngio, com inserção de um motivo arturiano no desfecho: os amores entre um cavaleiro (conde almirante) e a infanta são delatados ao rei. Os amantes são condenados à morte. Mais tarde, de seus túmulos brotam árvores que se entrelaçam, sugerindo a vida transcendente do amor – como se vê no romance de Tristão, do século XII. “Rosalinda”, como se apresenta no Romanceiro, não é encontrado em nenhum outro cancioneiro. Na verdade, conforme revela o próprio Garrett no prefácio ao romance, este foi escrito a partir de “três fragmentos diversos, tão fragmentados, que nem um deles por si se entendia bem”21. Daí poder-se encará-lo como um texto totalmente reconstruído por Garrett, se não por sua pura inspiração, ao menos pelas escolhas arbitrárias que fez entre os diversos motivos e variantes dos fragmentos a fim de edificar um todo coeso em forma e significado. Essa peculiaridade do texto permite estudar, com abundância de detalhes, o processo de criação do autor: a 20 GARRETT, Almeida. Rosalinda in: Romanceiro: Adozinda e outros. Lisboa: Typographia da Sociedade Propagadora dos Conhecimentos Úteis, 1843, p. 183-189. Ver, no Anexo 1, a lição de 1853, última publicada em vida do poeta e que servirá de objeto para nossas análises. 21GARRETT, Romanceiro, op. cit, v. 1, 1983, p. 170. Estes três fragmentos foram reconstruídos individualmente e publicados no segundo volume do Romanceiro, em 1851, agrupados entre os “Romances cavalherescos antigos de aventuras, sem referência à história ou sem a ter conhecida” (Garrett toma o termo “cavalheresco” e a variante “cavalheiresco” como sinônimos de “cavaleiresco”, no sentido de referente à cavalaria medieval). São eles: “Reginaldo”; “Claralinda” e “D. Claros de Além-mar”. Somem-se a estes outros dois romances não mencionados por Garrett, mas cujos desenlaces, com plantas nascendo dos túmulos dos amantes, têm pontos de contato óbvios com “Rosalinda”. São eles o “Conde Nilo” e “A Peregrina”, publicados no terceiro volume do Romanceiro, também em 1851. 13

  13. forma como os símbolos da tradição são aproveitados - as guerras de Reconquista; a vassalagem e o ideal cavaleiresco; o imaginário cristão; o caráter do amor, da sensualidade e da morte - e adaptados a um novo universo, aquele letrado do Dezenove. Ao fim do trabalho, deve-se poder entender melhor não só o significado profundo do Romanceiro e seu lugar na obra de Garrett e no conjunto do Romantismo português e europeu, mas também as estratégias de atualização – tradução – de temas medievais e formas literárias populares – a tradição – pelo movimento romântico. 14

  14. Parte I tradição

  15. Capítulo 1 O Popular, o Oral, o Tradicional “Acontece várias vezes de chocarmo-nos com uma dificuldade ao discutir ou argumentar sobre uma posição determinada porque não se formulou corretamente a definição.” Aristóteles. Tópicos confusões. A ntes de discutir especificamente o modelo tradicional adotado por Garrett como ponto de partida para a construção de seu Romanceiro – o romance tradicional –, devem-se delimitar bem alguns termos empregados com freqüência neste trabalho – “popular”, “oral” e “tradicional” – cujos significados, longe de serem unívocos, prestam-se a grandes O termo “popular” serve a quase tudo que diga respeito ao povo22: “o que foi criado pelo povo; o que agrada ao povo independente de sua origem; o que é considerado grosseiro e ilógico e está ligado às camadas inferiores da população”.23 22 Vocábulo que, assim como “popular”, possui conotação ampla: pode ser entendido como camada economicamente desfavorecida, ou conjunto de indivíduos que compartilham os mesmos atributos culturais, etc. Ver: DIAZ VIANA, Luis. Literatura oral, popular y tradicional: uma revisión de términos, conceptos y métodos de recopilación. Valladolid: Castilla Ediciones, 1997, p. 16-17. “O povo para os românticos, e, portanto, para Garrett, identificava-se com a entidade coletiva anónima de pouca instrução e reduzida capacidade económica, mas entidade fundadora e identificadora de toda comunidade nacional.” in: PINTO CORREIA, João David. “Almeida Garrett e a literatura

  16. Sob as perspectivas citadas, o “popular” só pode ser imaginado a partir da divisão da sociedade em uma classe dominante e outra marginal. Esta seria o povo e a literatura produzida ou aceite por este, a “popular”. Mais ainda, a falta de conhecimento das regras de estilo, de apuro do gosto, daria às obras um caráter “grosseiro e ilógico”. A oposição entre popular e erudito está na raiz dos próprios conceitos. Para Paul Zumthor, tais conceitos só se sustentam relativamente um ao outro. O pesquisador, ao pensar na bipolaridade existente, nas sociedades letradas, entre uma cultura hegemônica e outras subalternas, toma como popular aquilo que é marginal, que vive pelas arestas da vida e cultura oficiais24. Atente-se, porém, para a impossibilidade de separação rígida entre o mundo “marginal” e o “oficial”. Tratando da cultura popular na Baixa Idade Média européia, Burke chama atenção para o que denomina “cultura de folhetos” (chap-book culture): [As] interações entre cultura erudita e cultura popular se tornavam ainda mais fáceis porque [...] havia um grupo de pessoas que ficavam entre a grande e a pequena tradição, e atuavam como mediadores. [...] Entre a cultura letrada e a cultura oral tradicional vinha o que se poderia chamar de “cultura de folhetos”, a cultura dos semiletrados, que tinham freqüentado a escola, mas não por muito tempo. 25 Além da gradação existente entre estratos culturais, de que a “cultura de folhetos” é testemunha, ocorre a freqüente troca de informações entre tais estratos26. O historiador francês Georges Duby demonstra o quanto valores e manifestações culturais oriundos de um extrato social podem ser disseminados por toda a comunidade27. Isto é bem evidente no que diz respeito à vulgarização dos tradicional portuguesa” in: MIRANDA, José da Costa (org.). Almeida Garrett: um breve encontro. Caldas da Rainha: Livraria Nova Galáxia, 2000, p. 40. 23 FRANCO JÚNIOR, Hilário. A Eva Barbada: ensaios de mitologia medieval. São Paulo: EDUSP, 1996, p. 34. 24 ZUMTHOR, Paul. Introdução à poesia oral. Trad. Jerusa Pires Ferreira. São Paulo: Hucitec, 1997, p. 23. 25 BURKE, Peter. Cultura popular na Idade Moderna. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 89. 26 “Pode-se afirmar com segurança que havia um grande tráfego de mão dupla entre elas [cultura popular e erudita]”. Ibid., p. 85. 27 DUBY, Georges. “A vulgarização dos modelos culturais na sociedade feudal” in: A sociedade cavaleiresca. Trad. Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1989,p. 145-153. 17

  17. modelos culturais forjados nas cortes principescas, os quais, progressivamente, descem às camadas inferiores da população e passam a interagir na sua cosmovisão. O movimento contrário, de apropriação, por parte da aristocracia medieval, de valores ou formas geradas nas partes mais baixas do edifício social, também é documentado28. O certo é que, na Idade Média, a constituição do arcabouço cultural estava ligada a um movimento de duplo sentido dos materiais entre os diferentes extratos sociais. Nas palavras de Duby: Percebemos que o movimento de vulgarização se reveste de um duplo aspecto: recepção, imitação, pelas classes sociais inferiores, de modelos e atitudes propostas pelas elites, e, no sentido inverso, adoção pelas próprias elites de alguns valores originários de níveis menos elevados.29 Tal realidade foi percebida com lucidez por Franco Jr., que afirma a necessidade de pensar em cultura popular como “aquela praticada, em maior ou menor medida, por quase todos os membros de uma dada sociedade, independente de sua condição social”, ou seja, “seria o denominador cultural comum, o conjunto de crenças, costumes, técnicas, normas e instituições conhecido e aceito pela grande maioria dos indivíduos da sociedade estudada”.30 Sob esta perspectiva, o “popular” apenas designaria o grau de difusão de um determinado elemento pela sociedade. Seria popular tudo o que fosse difundido em larga escala e, mais ainda, que atravessasse fronteiras sócio-econômicas. A “cultura popular” estaria então identificada com aquilo que o próprio Franco Jr. denomina “cultura intermediária”, aquela constituída pela convergência de elementos culturais de todos os segmentos de uma sociedade. Conceituar o “popular” como predicativo de uma certa camada cultural ou social é tarefa complexa devido à própria heterogeneidade e complexidade da 28 Ver BURKE, op. cit, p. 52 e ss. 29 DUBY, A sociedade, op. cit, p. 148. É útil lembrar aqui que tal movimento não era “simétrico”. A elite participava mais ativamente daquilo que Redfield chamava de “pequena tradição” do que o povo comum da “grande tradição”. O modo de transmissão desta era, fundamentalmente, o escrito, era ensinada em liceus e universidades, era comungada no ambiente privado das nobres casas, exigia preparo: no mínimo, alguma competência com as letras. Aquela, transmitida de modo informal, principalmente por via oral, estava aberta a todos – na igreja, na praça, no mercado. Cf. BURKE, op. cit, p. 55. 30 FRANCO JÚNIOR, op. cit., p. 34. 18

  18. camada que se pretende abarcar31. Visto isso, este trabalho tomará “popular” como um indicador da difusão de determinado fenômeno no corpo social, e não por seu caráter qualitativo ou uma estética singular. “Popular” será tudo o que é conhecido e aceito em larga escala por uma determinada comunidade, seja ou não antigo, anônimo ou oral. Menos complexo é delimitar o segundo termo: o “oral”. Zumthor considera oral “toda comunicação [...] em que pelo menos transmissão e recepção passem pela voz e pelo ouvido”32. Tal comunicação, principalmente quando apresenta intenções poéticas, serve-se de uma série de estratégias como a “estrutura formular”33, os recursos mnemônicos, prosódicos, etc. Tais elementos podem ser reproduzidos mesmo em textos escritos – como no próprio Romanceiro de Garrett, por exemplo. Daí poder-se falar em marcas de oralidade na literatura impressa. O oral, neste sentido, pode ser tomado já não apenas como um mecanismo de transmissão, mas, metonimicamente, como o conjunto de procedimentos poéticos característicos da poesia transmitida pela voz34. Nem tudo o que é popular e/ou oralé “tradicional”. Se o popular diz respeito à difusão e o oral aos mecanismos de transmissão – a voz – e seus condicionantes formais, a tradicionalidade é determinada pelo relacionamento do objeto cultural com a comunidade na qual circula. De acordo com Zumthor: A tradição aparece abstratamente como um continuum de memória que carrega a marca dos textos sucessivos que realizaram um mesmo modelo nuclear, ou um número limitado de modelos funcionando como norma.35 Apesar de muitas vezes confundida com essa “norma” que é apenas uma de suas faces aparentes, a tradição é o elo comum entre o autor e sua audiência. É a legenda que media a emissão e a recepção da mensagem poética – em termos de significante (fórmulas, ritmos, vocábulos) e significados (temas, fábulas, etc.). No 31 Para Gramsci, “o povo não é uma unidade culturalmente homogênea, mas está culturalmente estratificado de maneira complexa” apud BURKE, op. cit, p. 56. 32 ZUMTHOR, Introdução, op. cit., p. 34. 33 Ver: LORD, Albert. B. “The formula” in: The singer of tales. 9 ed. Cambridge/London: Harvard University Press, 1997, p. 30-67. 34 Tais procedimentos serão discutidos sistematicamente no capítulo seguinte e esparsamente no decorrer de todo o texto. 35 ZUMTHOR, Paul. Essai de poétique médiévale. Paris: Seuil, 2000, p. 97. 19

  19. caso da cultura tradicional, o cantor, mais do que “seguir” a tradição sob pena de não ser aceito, é ele próprio instrumento de expressão da comunidade, com pouca intervenção realmente individual: As variações ou intervenções individuais surgem como respostas às exigências da comunidade e não fazem mais do que se antecipar à evolução regular do sistema.36 Um romance, mesmo tendo sido criado por um indivíduo há não muitos anos, torna-se tradicional ao ser considerado patrimônio comum, tão enraizado na memória que parece secular. Nas palavras de Menéndez Pidal: Encarado como patrimônio cultural de todos, cada um se sente dono dele por herança, repete-o como seu, com autoridade de co-autor; ao repeti-lo, ajusta-o e o amolda espontaneamente à sua maneira mais natural de expressão, e assim, ao propagar-se no canto de todos, vão sendo fixados no texto da canção algumas modificações [...] todas decisivas para ir acomodando-a à índole mais natural do povo inteiro.37 Reside nisso a marca qualitativa da arte tradicional: sua “abertura”38, sua apropriação pela comunidade que não teme adaptá-la, transformá-la, atualizá-la. A tradição, neste sentido, concerne ao futuro mais que ao passado do qual, historicamente, provém. Ela projeta este passado sobre o futuro e funciona em prospectiva39. A tradição mantém vivo um objeto cultural; não o fossiliza e torna não funcional: “a tradição oral vai se transformando, não se mantém estática, como tampouco se conserva imóvel a comunidade humana em que se sustenta”40. O que a tradição carrega e mantém, neste sentido, são significados e estruturas profundas. Na superfície, são comuns e mesmo necessárias traduções – há que atualizar o tradicional a fim de manter sua funcionalidade social e estética. 36 Ibid., p. 101. 37 MENÉNDEZ PIDAL, Ramón. Romancero hispánico (hispano-portugués, americano y sefardi) – teoría y historia. Madrid: Espasa-Calpe, 1953, v. 1, p. 45. 38 As obras tradicionais são abertas no sentido de estarem sempre em estado de latência, nunca acabadas. Esperam de seu reprodutor que lhes dê uma forma de completude efêmera. Ver: CATALÁN, Diego. Arte poética del romancero oral: los textos abiertos de creación colectiva. Madrid: Siglo Veintiuno, 1997. 39 ZUMTHOR, Essai, op. cit, p. 103. 40 VIANA, op. cit., p. 28 (grifo do autor). 20

  20. Capítulo 2 O Romance Tradicional “No plano teórico mais convencional, qualquer estudante de literatura ‘acredita saber’ o que é um romance, qual foi a origem do gênero e como ainda sobrevive na tradição oral. Mas, na realidade, ao romancista mais especializado podem assaltar algumas dúvidas...” Luis Díaz Viana. Lit. oral, popular y tradicional romance faz parte da literatura oral tradicional, sendo o O representante ibérico da balada européia. Tem como definição fundadora, referência obrigatória para os estudiosos do romanceiro, aquela impressa no “Proêmio” da Flor nueva de romances viejos de D. Ramón Menéndez Pidal: os romances são “poemas épico-líricos breves que se cantam ao som de um instrumento, quer em danças corais, quer em reuniões efetuadas para simples recreio ou para o trabalho em comum”41. Se se pensar na variedade das manifestações romancísticas, sem contar com suas derivações letradas, ressalta logo a insuficiência das palavras de D. Ramón. Não há menção à estrutura dramática, dialógica, fundamental na constituição do 41 MENÉNDEZ PIDAL, Ramón. Flor nueva de romances viejos. 45ª ed. Madrid: Espasa-Calpe, 2000, p. 9.

  21. gênero42 ou aos temas ou ao tempo histórico focalizados nos poemas. Ainda, considere-se que na tradição oral moderna o canto é poucas vezes acompanhado de instrumento. Muitas questões poderiam ser ainda levantadas a fim de ratificar a “imperfeição” da definição do mestre espanhol, o que deixa clara, desde já, a insuficiência que preside a maioria das definições, em razão diretamente proporcional à amplitude do fenômeno que pretendem abarcar – idéia corroborada pelo comentário de Pinto Correia ao conceito impresso por Menéndez Pidal: “como em toda definição, parece que se diz tudo, muito ficando, no entanto, por explicitar, sobretudo se se pretende uma descrição mais completa em ordem a logo se apreenderem as características específicas do gênero”43. Apesar da insuficiência aparentemente inevitável, boa parte dos pesquisadores do romanceiro arriscam definições próprias para o gênero, sobretudo pela necessidade de uma delimitação exata que balize seus estudos. Há concepções brevíssimas, como a de Diego Catalán – “breve poema épico destinado ao canto e transmitido e reelaborado pela tradição oral”44 – e outras, extensas, como a de Ana Valenciano – Em primeiro lugar, os romances são narrações expressas em linguagem poética própria, cuja característica mais notável é um tipo de discurso articulado prosódica e dramaticamente. A estrutura métrica configura de um modo típico a substância lingüística, com uma adequação quase perfeita das construções sintáticas aos períodos rítmicos, O modo de representação dramático mimetiza o discorrer do tempo, reactualiza o passado no presente, um antes e depois. Para isso, o romanceiro vai valer-se de um vocabulário específico, consistente em sintagmas lexicalizados, as fórmulas, que, em geral, pertencem á língua literária primitiva do gênero. O verso-tipo do romance encontra-se constituído por dois hemistíquios octossilábicos ou hexassilábicos (em português heptassilábicos ou octassilábicos ou ainda pentassilábicos ou hexassilábicos) que costumam abarcar uma unidade sintática, e costumam ser cada um deles um sirrema, isto é, um sintagma subfrásico. A narração progride geralmente verso a verso. O léxicon formulístico, isto é, o repertório de ‘palavras’ do romanceiro tomou forma à margem da literatura escrita e adquire-se, é claro, por transmissão oral. A unidade frásica, a fórmula, é um tropo cuja significação, distinta das frases que a compõem, é reconhecível devido à sua ocorrência em diferentes romances. Mas a fórmula não exige, para o ser, uma fixidez absoluta. Admite 42 Pinto Correia afirma sua “organização narrativo-dramática ou só dramática”. In: PINTO CORREIA, João David. Romanceiro oral da tradição portuguesa: apresentação crítica, antologia e sugestões para análise literária. Lisboa: Edições Duarte Reis, 2003, p. 23. (Grifo nosso) 43 Ibid., p. 21. 44 Verbete “Romanceiro” in: COELHO, Jacinto do Prado. Dicionário de Literatura. Porto: Estampa, 1973, v. 2, p. 975. 22

  22. variações, como o próprio romance. Por outro lado, a tradição cria continuamente novas fórmulas.”45 – que focaliza detalhadamente o processo de criação-transmissão dos romances, mas deixa de lado aspectos importantes como a função social ou a manifestação musical. Outros autores ressaltam aspectos temáticos. J. J. Nunes indica os referentes – “acontecimentos variados, sobressaindo-se entre eles os bélicos e amorosos” – e Fidelino de Figueiredo enumera, em sua definição, temas e subtemas: “um heroísmo individual, uma aventura bélica, uma traição de amor, uma felonia contra a gratidão, um ódio inexorável, uma memorável vingança”, e completa que os romances “são todos movimento, força primitiva, desdobrada numa vertiginosa sucessão de pequenos quadros e, como um filme, que é também arte primitiva, se decompõe em fotografias justapostas”.46 Na busca de caracterizar os vários aspectos que compõem o romance tradicional, Pinto Correia amplia sua definição de 198647, e traz à luz, em 2003, a seguinte: [O romance tradicional] será uma prática significante de manifestação lingüístico-discursiva oral de curta extensão, com natureza e manifestação poética (em verso longo com dois hemistíquios e acompanhada de música), de organização predominantemente narrativo-dramática ou só dramática, embora por vezes muito contaminada pela componente lírica, altamente variável (versões e variantes) em cada uma das componentes textuais (expressão e no conteúdo) e que, situada na literatura oral tradicional, se insere no extracontexto da vida social quotidiana de uma comunidade popular (nos momentos de trabalho ou de lazer).48 Mais completa e complexa que as de Menéndez Pidal e Diego Catalán; mais abrangente que as de Ana Valenciano, J. J. Nunes e Fidelino de Figueiredo, a formulação de Pinto Correia será tomada como porto seguro para as reflexões acerca de características e fenômenos do romance traçadas a seguir. 45 VALENCIANO apud PINTO CORREIA, Romanceiro oral, op. cit., p. 24. 46 Ibid., p. 22. 47PINTO-CORREIA, O essencial, op. cit., p. 8-9. 48 PINTO CORREIA, Romanceiro oral, op. cit., p. 23. 23

  23. Características estruturais e temáticas O romance é uma forma poética cujos versos possuem, segundo o sistema métrico espanhol, quatorze ou quinze sílabas, com cesura na oitava. Tais versos, entretanto, foram, até meados do século XX, comumente transcritos em versos de sete sílabas, na chamada “forma breve”, que o costume português chama redondilha maior49. A rima é, em geral, única e toante, sendo a consoante característica dos romances mais modernos50. Além disso, seguindo a tendência de toda a literatura oral, o romance recorre ao emprego de fórmulas e expressões comuns ao estoque da tradição, algumas das quais são bem específicas do gênero, como: “Mês de maio, mês de maio / Abril pela primavera” ou “Bem se passeia...”, ou ainda “Já lá vem o sol à terra”, entre outras. O próprio Garrett traçava, em carta ao senhor Duarte Lessa, alguma teoria das características formais dos romances. Em um momento, refere-se a escrever um poema em “versos pequenos, octossílabos, ou de redondilha como chamavam dantes os nossos”51. Em outro momento, escreve: O metro próprio e natural de nossa língua para este gênero de poesia, e para todos os gêneros populares, não era o endecassílabo, o que dizemos vulgarmente heróico [...]. Os nossos mais rudos camponeses improvisam em seus serões e festas [...] mas observa-se que o metro desses improvisos é sempre, sem excepção alguma, o da redondilha de oito sílabas, rara vez o da endecha[...]. A causa é óbvia: aquela é a meditação mais natural que lhe oferece a música da língua.52 Em outra passagem, alude à poesia de W. Scott, restauradora dos “metros simples e curtos que mais naturais são ao estilo cantável, essencial às composições daquele gênero”53. Outro aspecto a ser levado em conta na constituição dos romances tradicionais é o de sua componente melódica. Mesmo que modernamente possam se apresentar simplesmente declamados, o gênero pressupõe, devido à sua inserção na 49 Acerca das questões métricas no romanceiro tradicional ver: MENÉNDEZ PIDAL, Ramón. Romancero hispánico. Madri: Espasa-Calpe, 1953, v. 1., p. 81-147. 50 CATALÁN, Arte poética, op. cit, v. 1, p. 89. 51 GARRETT, Romanceiro, op. cit, v. 1, 1983, p. 53. 52 Ibid., p. 57 53 Ibid., p. 56. 24

  24. vida social em momentos de trabalho e lazer, a existência de uma melodia ligada ao verso – melodia que pode ser a mesma para vários romances ou diversas nas versões de um mesmo romance –, a qual são tidas por Caufriez como exemplar notável “da manifestação musical medieval”54. Desse caráter melódico primordial deriva uma questão importante: a fixação de um texto sem música, como é o caso dos romances de Garrett, implica em transformação de expressão do romance – o poeta é levado a recuperar, no plano literário, a melodia perdida. Devemos, ainda, notar que o romance economiza ao máximo os meios expressivos, “ficando parte da significação a cargo da capacidade de ‘reconstituição’ diegética do auditor/leitor ou enunciatário”55. Disto resulta um aspecto estilístico peculiar: os romances são, em grande parte, poemas compostos na forma de diálogos, com pequena intervenção narrativa. Muito pouco há de descrição e, por extensão, de adjetivos, predominando substantivos e verbos. Além disso, início e final dos poemas são quase sempre abruptos, como se contassem parte de uma história cujo enredo é bem conhecido pela assistência56. Note-se, no entanto, que versões cultas e/ou mais modernas tendem a romper com essa regra. Busca-se, nestes casos, um texto mais coeso, com maior número de elementos de ligação e conclusões unidirecionais. Tais características devem-se, em grande parte, ao afastamento progressivo do contexto, o que obriga o autor a completar dentro do próprio texto as informações que antes viriam da simples experiência dos ouvintes/leitores. Estes, como em todo contexto tradicional, possuíam expectativas acerca do que iriam ouvir/ler, não apenas do ponto de vista formal, mas também daquele temático. As fábulas dos romances enfocam, quase que exclusivamente, o universo cavaleiresco medieval e seus valores nobres, heróicos e religiosos. Binômios como amor/ódio, fidelidade/traição, vida/morte, tratados em chaves da ideologia feudal, 54 Apud PINTO-CORREIA, O essencial, op. cit. p.13. 55 Ibid., p. 16. 56 Acerca de inícios e desenlaces abruptos ver: MENÉNDEZ PIDAL, Romancero hispánico, op. cit., v. 1, p. 71-75. 25

  25. são os grandes núcleos temáticos do gênero cujos personagens, sintomaticamente, são reis, princesas, cavaleiros, soldados, infantes, etc.57 Classificação Para um objeto cultural limitado por um cânone formal e temático tão restrito, admira a amplitude da proliferação do romance tradicional. Costa Fontes, em seu fundamental Índice58,aponta para a existência de mais de três centenas de romances apenas no romanceiro português e brasileiro. Em vista desta pletora de textos revela-se a necessidade de uma classificação que sirva como instrumento de trabalho e dê alguma organização aos corpora recolhidos ao longo de cinco séculos. O próprio Garrett, no projeto de seu Romanceiro, acabou por dividi-lo em categorias: “os romances da Renascença” – recriados por ele; “romances cavalherescos antigos de aventuras, que não têm referência histórica ou não a têm conhecida”; as projetadas “lendas e profecias”; os “romances históricos compostos sobre factos ou mitos da história portuguesa e de outras” e; uma categoria final: os “romances vários, todos os que não são épicos ou narrativos”, espécie de miscelânea.59 Tal divisão, como tantas outras empreendidas pelos estudiosos e compiladores do romanceiro, é insuficiente e imprecisa60. Atualmente, como ferramenta de uso universal, contamos com a proposta “temático-figurativa” – nas palavras de Pinto Correia – que divide o romanceiro em seções, impressa no volume 1 do Índice de Costa Fontes: A: épicos; B: carolíngios; C: históricos; D: mouriscos; E: bíblicos; F: clássicos; G: aventuras do herói jovem; H: presos e cativos; I: regresso do marido; J: amor fiel; K: amor infeliz; L: esposa infeliz; M: adúltera; N: mulheres assassinas; O: raptos e violações; P: incesto; Q: mulheres sedutoras; R: mulheres seduzidas; S: 57 PINTO CORREIA, Romanceiro oral, op. cit., p. 40. 58 COSTA FONTES, Manuel da. O romanceiro português e brasileiro: índice temático e bibliográfico. Sel. e com. das transc. musicais de I. J. Katz; correlação pan-européia de S. G. Armistead. 2 v. Madison: Princeton, 1997. 59 Cf. GARRETT, Romanceiro, op. cit, v. 2, 1983, p. 57-58. 60 Para um histórico das tentativas taxionômicas ver: STEFANO, Giuseppe. “Consideraciones sobre la clasificación de los romances” in: Romanceiro ibérico: revista do Instituto de Estudos do Romanceiro Velho e Tradicional da Universidade Nova de Lisboa. Edições Colibri, n. 1, 1999; PINTO CORREIA, Romanceiro oral, op. cit., p. 41-50. 26

  26. várias aventuras amorosas; T: Enganos e artimanhas; U: sacros; V: morte personificada; W: animais; X: assuntos vários; Y: canções cumulativas; Z: romances e canções infantis. Como em outros casos, há a imprecisão de seções como “assuntos vários”, além de sobreposição de categorias para um mesmo romance – “Rosalinda”, por exemplo, é um texto carolíngeo (B) e, ao mesmo tempo, de “amor fiel” (J). De toda forma, tal proposta de Costa Fontes, assim como aquela de Armistead da qual derivou61, é o padrão que auxilia os pesquisadores no trato com os acervos e catálogos de romances. Origens A origem dos romances data provavelmente da Baixa Idade Média, na qual pequenos episódios de poesia épica são isolados e tratados pelos cantores do povo como narrativas isoladas, que ganham um tom mais lírico e dramático. Menéndez Pidal descreve detalhadamente este mecanismo: estes, como perdem seu interesse por perder sua conexão com o conjunto épico, tendem a desaparecer ou a transformar-se. Então, a cena isolada se reorganiza para buscar em si mesma a totalidade do seu ser; ao circular, o episódio fragmentário, na memória, na fantasia e na recitação de vários indivíduos e gerações, se esquecem os detalhes objetivos interessantes em um fragmento breve, e se ampliam ou acrescentam, em troca, elementos subjetivos e sentimentais; a poesia muda de natureza, e em vez do estilo épico, no qual predominam as imagens objetivas e a narração, ora toma o estilo épico-lírico, que pinta a cena em fugazes rasgos de emoção efetiva; ora toma o estilo dramático-lírico, no qual predominam elementos dialogísticos; em ambos os casos os relatos desaparecem em grande parte ou por completo, para dar lugar a uma intuição rápida e viva de uma situação dramática. 62 Apesar de atualmente considerada como consensual, a identificação de tal Parte-se de uma cena que contém muitos pormenores narrativos: mas processo como gerador unívoco dos romances não está livre de desconfianças, expressas em afirmações como: “Tudo quanto dissemos até aqui pressupõe que aceitamos a explicação dada por Ramón Menéndez Pidal”63; ou ainda, 61 Ver PINTO CORREIA, Romanceiro oral, op. cit., p. 45-46. 62 MÉNENDEZ PIDAL. Flor nueva, Op. cit., p. 12. 63 PINTO CORREIA, Romanceiro oral, op. cit., p. 57. Neste texto, o autor aponta para a possibilidade de repensar acerca da teoria das origens do romanceiro a partir de comentários do historiador José Mattoso ao Livro de Linhagens. 27

  27. Dos romances mais antigos que se podem datar, não há nenhum que seja de caráter épico, fato que há suscitado dúvidas sobre a relação genética entre épica e Romanceiro”64 É curioso notar que, na concepção tradicionalista de Bédier, as canções épicas francesas – as gestas de que nos fala Menéndez Pidal – originam-se de cantos mais curtos65, compostos não apenas sob a impressão imediata de fatos históricos, mas por e para aqueles que tomaram parte nestes fatos. Nesses cantos, o elemento narrativo tem lugar restrito, já que os fatos são bem conhecidos. O que ressalta, então, é o lírico: o orgulho da vitória, a dor da derrota, o lamento das mortes, o espírito da revanche, etc66. As canções de gesta dali derivadas, porém, apresentam uma configuração diversa: São contos minuciosos, detalhados, dos quais o elemento lírico [...] está quase ausente. Tais canções não podem se apoiar senão nos cantos lírico-épicos anteriores, dos quais desenvolveram o elemento épico e suprimiram o lírico (com efeito, os atores e as testemunhas estando mortas há muito tempo, não havia mais lugar para os sentimentos líricos dos primeiros cantos).67 Esta alternância entre épico e lírico, narrativo e dramático – que, de toda forma, parece ser pedra-de-toque da história literária – resulta em uma questão ainda não respondida: poderiam os romances derivar diretamente das cantilenas mencionados por Bédier? A relação entre romances e épica, sob esta perspectiva, assumiria um caráter “fraternal” – teriam uma origem comum – e não mais de filiação. A resolução dessa questão genética encontra-se além dos limites deste trabalho. Tomando-se, então, a opinião da maioria, cabe ressaltar que as canções de gesta, efetivamente difundidas a partir do século XI, eram poemas escritos, boa parte das vezes, por clérigos, que pretendiam atrair a atenção do público para uma determinada abadia ou peregrinação. Para isso, é claro, procuravam enaltecer “suas relíquias miraculosas e os heróis seus fundadores. É compreensível que essas 64 ALVAR, Carlos; ALVAR, Manuel (Eds.). Épica medieval española. Madrid: Cátedra, 1991, p. 79. 65 Chamados por Gastón Paris de “cantilenas”. Ibid., p. 46. 66 BÉDIER, Joseph. Les légendes épiques: recherches sur la formation des chansons de geste. Paris: Honoré Champion, 1912, t.3, p. 456. 67 Ibid., loc. cit. 28

  28. canções de clérigos falem muito pouco ou nada de amor.”68 O amor, nesse gênero de poema, só é documentado no episódio cortês de “La Légend de Girard de Roussillon”, escrito entre 1150 e 1180. Dessa data até o aparecimento do romance, na forma que hoje se encontra nos romanceiros, algum tempo se passou. O primeiro documentado, numa cópia feita na Itália do manuscrito de um estudante maiorquino, Jaume de Olesa, é de 1421 – inicia por “Gentil dona, gentil dona” e cuja língua é um castelhano cheio de catalanismos69. Compilações O fato é que, além desse primeiro testemunho do século XV, não foram poucos os que se dedicaram a compilar os romances que transitavam pelas feiras, cantados ou na forma de “cordel” – os pliegos soltos hispânicos70 –, principalmente nos séculos XVI e XVII, nos quais o gênero atingiu enorme popularidade. Cabe lembrar que o termo “romance”, no final da Idade Média, encontrava- se impregnado pela noção de “língua romance”, vernáculo recém derivado do latim vulgar, o que levava os editores a coligir tudo aquilo que andava nesse falar antigo, o que inclui além dos romances tradicionais, trechos de poesia épica e lírica. A tradição dessas coleções é toda hispânica e abundante, como testemunha a obra monumental de Rodriguez-Moñino acerca da Silva de romances de Barcelona. Já no século XIX, Ochoa, ao fim do prólogo ao seu Tesoro de los Romanceros, que pretendia ser uma reunião de tudo o que havia nos romanceiros antigos, dá-nos uma pequena amostra das coleções disponíveis:71 68 ROUGEMONT, Denis de. O amor e o ocidente. Rio de Janeiro: Moraes Editores, 1968, p. 293. 69 MÉNENDEZ PIDAL, Ramón. Estudios sobre el romancero. Madrid: Espasa-Calpe, 1973, p. 446a. 70 Por pliego solto se entende, em geral, um caderno de poucas folhas (máximo de 32 páginas) destinado a propagar textos literários ou históricos entre a grande massa leitora, principalmente popular. In: RODRIGUEZ-MOÑINO, Antonio. La silva de romances de Barcelona, 1561: contribuición al estudio bibliográfico del romancero español en el siglo XVI. Salamanca: Universidad de Salamanca, 1969, p. 13 (grifo do autor). O capítulo 1 (p. 11-49) desta obra de Rodriguez Moñino apresenta descrições de mais de vinte e sete coleções de pliegos soltos. 71 OCHOA, D. Eugênio. Tesoro de los romanceros. Paris: Baudry, 1838, p. xxxi. Observe-se aqui que as datas apresentadas são referentes às edições consultadas por Ochoa e não à primeira edição das obras. 29

  29. ? Cancionero General, recopilado por Fernando del Castillo, Edicion gótica in folio. Valencia del Cid: Cristóbal Koffman, 151172; Cancionero de Romances, en que están recopilados la mayor parte de los Romances castellanos que hasta agora se han composto. 16 a. Amberes, 1555; 73 Floresta de varios romances sacados de las historias antiguas de los hechos famosos de los doce Pares de Francia, agora nuevamente corregidos por Damian Lopez de Tortajada. 16a. Valencia, sin ano; pero parece edicion de fines del siglo XVII, ó principios del XVIII; Silva de varios Romances: agora de nuevo recopilados los mejores Romances de los tres libros de Silva y añadidos los de la Liga. En esta última impression van añadidos el de la morte del rey Felipe II, etc. 16ª Barcelona, 1696 (a primeira edição é de 1561); Romances nuevamente sacados de historias antiguas de la Crónica de España, por Lorenzo de Sepúlveda, vecino de Sevilla. Van añadidos de muchos nunca vistos, compuestos por un Caballero Cesáreo, cuyo nombre se guarda para mayores cosas. 16 a. Amberes, 1566; Romancero General, en que se contienen todos los romances que andan impresos, etc. 4 a. Madrid, 1604. ? ? ? ? ? Ochoa cita mais nove coleções, o que reflete a popularidade alcançada pelo gênero na Espanha. Devemos notar ainda dois fenômenos: o primeiro, o da maioria dessas obras serem fruto de compilação de fontes impressas, e não de recolhas orais74; o segundo, de que o castelhano era uma espécie de língua poética específica para o romanceiro, assim como o galego-português havia sido para a lírica trovadoresca.75 – daí talvez a predominância tão acentuada de romances em castelhano. O romance, assim, é marcado por um caráter internacional. Pinto Correia afirma que “o estudo dos romances portugueses deve se dar no âmbito mais vasto do romanceiro hispânico”76. Tal afirmativa, ratificada por Menéndez-Pidal e por 72 Neste volume, contendo mais de mil poemas, há quarenta e oito romances em seção começada com a seguinte epígrafe: “Aqui comiẽçã los romãces cõ glosas y sin ellas y este primero es del conde claros con la glosa de francisco de leon” in: RODRIGUEZ-MOÑINO, op. cit., p. 53 73 É considerado por muitos o primeiro romanceiro conhecido, editado por Martin Núcio. Ver: STEFANO, op. cit., p. 14. 74 Por isso o romanceiro velho é classificado como “culto” ou “letrado”. Os romances recolhidos no século XX, diretamente do canto do povo, formam o romanceiro “oral” ou “novo”. 75 Maria Ema Tarracha Ferreira, em sua introdução à edição do Romanceiro de Garrett, de 1997, afirma: “sendo o castelhano, até os fins do século XV, a linguagem comum a todos os povos peninsulares [...], os romances, como degenerescências das gestas, são divulgados no mesmo idioma em que estas foram compostas” (p. 37). 76 PINTO CORREIA, O essencial, op. cit., p. 7. 30

  30. quase todos os outros estudiosos do gênero, era já pressentida por Garrett, em princípios do século XIX: A nossa poesia primitiva e eminentemente nacional, a que do princípio e, por assim dizer, do primeiro balbuciar de nossa língua, nos foi comum com todos os outros povos que mais ou menos tiveram comunhão com a língua provençal, primeira culta da Europa, depois da invasão setentrional, foi seguramente o romance histórico e cavalheiresco, ingênua e rude expressão do entusiasmo de um povo guerreiro77. Se o romanceiro português não pode ser separado da tradição poética ibérica, em perspectiva mais ampla também não pode ser isolado de toda a tradição oral européia. Pensar sobre os mecanismos de construção e transmissão dos romances requer algumas reflexões acerca dos caminhos da poesia oral. 77 GARRETT, Romanceiro, op. cit., 1983, v. 1, p. 54. Por isso mesmo, Garrett tomará sem pudores as lições dos romanceiros hispânicos como guias na composição do seu. 31

  31. Capítulo 3 Como Vive um Romance “A inventividade, a potência criativa dos homens [...] não está em questão: ela se desenvolve plenamente no seio de sua tradição, em uma arte de variação e modulação.” Paul Zumthor. Essai de poétique médiévale ma bibliografia acerca da poética popular, notadamente da oral, U não pode prescindir dos nomes de Albert Lord e Paul Zumthor. O primeiro, seguindo os passos de seu mentor, Milman Parry, é responsável pela apresentação sistemática do caráter formular dos cantares épicos, das técnicas de memorização e reprodução desses cantares. O segundo, focalizando a poesia medieval, teorizou acerca dos mecanismos de transmissão oral, do anonimato, da “movência” dos textos. Apesar de não dirigidas especificamente para o caso do romanceiro, as pesquisas desses autores são ponto de partida para o estudo acerca das especificidades dos romances como poesia oral e tradicional. Poética da oralidade Que fique claro, já de início, que os estudos de Lord enfocam uma modalidade específica da poesia oral, a épica, calcada no modelo homérico e presentificada nos cantares recolhidos no interior da Iugoslávia, no início do século

  32. XX. Mais ainda, o que qualifica a poesia na qual Lord está interessado não é a “performance oral”, mas a “composição durante a performance oral”78: No caso do poema literário há um intervalo de tempo entre a composição e a leitura ou a performance; no caso do poema oral este intervalo inexiste, porque composição e performance são dois aspectos do mesmo momento […] Canto, performance e composição são facetas de um mesmo ato.79 Segundo o autor, a verdadeira poesia oral é um texto aberto, que se recria no momento de sua performance80. Daí que, para Lord, o verdadeiro poeta oral é aquele que, diferente do simples cantor, imprime sua marca no poema.81 No processo de formação desses poetas, primeiro o jovem toma um cantor experiente como mestre – sistemático ou esporádico –, em seguida, escuta os poemas, treina-os e, depois de longa maturação, sente-se preparado para apresentá- lo publicamente82. Nem por isso considera-se completamente formado um poeta. Nas palavras do pesquisador: “é melhor definir o final do período [de treinamento] pela liberdade com a qual ele se move em sua tradição, porque esta é a marca do poeta pronto”83. Assim como os poemas, os cantores, mesmo os “prontos”, estão em constante processo de transformação: “o cantor nunca estanca o processo de acumular, recombinar e remodelar fórmulas e temas, aperfeiçoando assim seu canto e enriquecendo sua arte.”84 Tratando das fórmulas e temas, Lord reflete acerca dos segmentos que se repetem em um poema – e mesmo em vários poemas. Tais segmentos, como os epítetos homéricos, são denominados “fórmulas”: Por fórmula entendo ‘um grupo de palavras comumente usadas sob a mesma condição métrica para exprimir uma idéia essencial dada’. Esta definição é de Parry. Por expressão formular eu denoto uma linha, ou meia linha, constituída 78 LORD, op. cit., p. 5. 79 Ibid., p. 13. 80 Ver também ZUMTHOR, Introdução, op. cit, p. 23 e ss. 81 LORD, op. cit, p. 13-14. 82 Ibid., p. 21 e ss. Burke resume a teoria de Lord: “atores, contadores de histórias e cantores [...] aprendem ouvindo os mais velhos e tentando imitá-los, e o que eles aprendem não são textos acabados, mas um vocabulário de fórmulas e motivos e as regras para sua combinação, uma espécie de ‘gramática poética’” in: BURKE, op. cit, p. 166. 83 LORD, op. cit., p. 26. 84 Ibid., loc. cit. 33

  33. em padrão formular. Por tema eu refiro os incidentes repetidos e passagens descritivas nos cantos.85 Como se nota, as fórmulas não são as únicas unidades que se repetem nos textos orais. Temas e expressões mais extensas também circulam entre partes do poema e entre vários poemas. Tais segmentos, ao lado de recursos musicais – tratam-se, na maioria das vezes, de textos acompanhados de melodia – servem como momentos de repouso no esforço narrativo do cantor, dos quais se serve a fim de ordenar as idéias e prosseguir com a canção86. Em resumo, a teoria que se costumou chamar de Parry-Lord indica que a poesia oral é sempre aberta e vive das transformações impostas por cada cantor, em cada performance. Mais ainda, que a estrutura dos poemas está assentada sobre unidades denominadas fórmulas, com diversas extensões e cargas semânticas que se articulam para formar o texto. É importante lembrar que os estudos de Milman Parry e Albert Lord fundamentam-se, como já mencionado, na poesia épica, a qual está longe de ser a única possibilidade de expressão oral. Paul Zumthor, em A letra e a voz, chama atenção para o fato: Um mal entendido enevoa o horizonte, e importa esclarecê-lo de imediato; muitos especialistas [...] admitem tacitamente que o termo oralidade, aquém da transmissão da mensagem poética, implica improvisação [...]. Donde tantas querelas suscitadas pela teoria de Parry-Lord, elaborada para dar conta dos procedimentos de pseudo-improvisação épica, mas tomada por definidora de toda a poesia oral.87 Apesar da justa advertência do estudioso suíço, a noção de um texto ao mesmo tempo produzido e reproduzido – condição intrínseca de objeto dependente exclusivamente da memória –, assim como a das estruturas formulares, configuraram-se em chaves importantes para os pesquisadores da poesia oral. O próprio conceito zumthoriano de “movência”, que visa a refletir a “mobilidade 85 Ibid., p. 4. 86 Ibid., p. 22. 87 ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz. Trad. Amálio Pinheiro e Jerusa Pires Ferreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 17 (grifo do autor). 34

  34. essencial do texto medieval”88, fundamenta-se em boa parte nos estudos de Lord e na “tradicionalidade” de Menéndez Pidal. No seu famoso Essai de poétique médiévale, Zumthor diz que, mesmo produzido por um indivíduo, o texto oral é caracterizado por sua “incompletude virtual”89. Em outra obra, afirma que a tradicionalidade oral “combina reprodução e mudança: a movência é criação contínua”90. Não se pode, aqui, tratar em detalhes conceitos complexos referentes à poesia oral. Apenas apresentados, eles servem de fundamento para reflexões mais específicas sobre a poética do romanceiro tradicional. Poética do romanceiro Em seu estudo sobre os Romances velhos em Portugal, Carolina Michaëlis de Vasconcelos se refere à presença de fórmulas: “numerosas frases feitas, de origem épica, que são neles [romances] empregadas amiúde, quase mecanicamente, como lugares comuns.”91. Em nota de rodapé, no entanto, lembra que autores como Clemencín e Milá, que logo perceberam estas “repetições” nos romances, basearam- se principalmente no ciclo carolíngio e nas fontes impressas. Fica clara a relação entre as fórmulas presentes nos romances e a filiação épica destes: derivados de poemas heróicos, os textos narrativo-dramáticos focalizados por nosso estudo carregam muitas características de seus ancestrais imediatos. Como veremos adiante, no caso específico do romance “Rosalinda” do Romanceiro de Garrett, as fórmulas possuem ainda outra função, a de identificar o poema como tradicional, já que são passagens que o público reconhece como parte do estoque coletivo. Por outro lado, atuam como ferramentas de articulação entre as partes da narrativa.92 Mais do que a presença das fórmulas, a “abertura” é a característica estrutural definidora do romance tradicional. É dela que resulta a grande quantidade de 88 ZUMTHOR, Essai..., op. cit, p. 91. 89 Ibid., p. 93. 90 ZUMTHOR, A letra..., op. cit, p. 145 (grifo do autor). 91 VASCONCELOS, Carolina Michaëlis. Romances velhos em Portugal. Porto: Lello & Irmão, 1980, p. 14. 92 Ver, no Capítulo 7 deste trabalho, a análise do romance “Rosalinda”. 35

  35. variantes encontrada nos romances – Catalán chega a contar mais de 600 versões93 de um romance como “La condesita”94. As variantes de uma canção popular são inumeráveis e não há duas que coincidam completamente. Segundo Menéndez Pidal, até um mesmo recitador, em duas ocasiões distintas, variará sua recitação, “porque a memória popular não se preocupa com a fidelidade ao pormenor” – e acrescenta: “a memória popular, mais ou menos, costuma ser acompanhada por alguma invenção ou refundição.”95 O mecanismo que gera e perpetua as variantes é, a um só tempo, individual e coletivo: individual, porque a variação surge no momento da recitação, na boca de um indivíduo – “é obra particular de um indivíduo”96; coletivo, enquanto dirigido pelo influxo da coletividade, enquanto encontra limite na aceitação dos ouvintes: [As variantes] encontram forte resistência nos ouvintes, que dão crédito e aderem ao texto sabido por todos, ao qual procura sempre retornar a memória de todos. Raras vezes uma destas invenções individuais tem êxito bastante para chegar a perpetuar-se, aceita por um extenso grupo que a repete e propaga.97 Sob essa perspectiva, é explícito o papel da coletividade como entidade organizadora dos romances, lapidando cada poema, aprovando o que considera ganho e rejeitando o que acredita ser degeneração. O texto passa, assim, por um processo evolutivo98 contínuo. A maioria [das variantes] oferece um valor positivo, produzida na excitação poética do cantor, que sente como própria a canção anônima e, ao recrear-se com ela, a re-cria. [...] Um poema tradicional é algo mutante, algo fluido que se adapta à sensibilidade e ao gosto de cada recitante, do mesmo modo que um líquido toma a forma da taça em que se encontra.”99 Se o romance é o fluido que toma forma na voz do cantor, as possibilidades de variação idiossincrática são infinitas. Não se deve, porém, reputar demasiada importância à criação individual: “Não há, pois, que supervalorizar a ‘conduta do 93 Catalán assume a nomeclatura de Menéndez Pidal, segundo a qual variante designa cada motivo ou expressão variável dentro do relato que constitui o romance, enquanto versão indica cada uma das recitações de um romance considerada em sua totalidade. Ver: CATALÁN, Arte poética..., op. cit., v. 1, p. 1, nota 2. 94 Ibid., v. 1, p. 117. 95 MENÉNDEZ PIDAL, Romancero hispánico, op. cit, v. 1, p. 41. 96 Ibid., p. 47. 97 Ibid., p. 44. 98 Considerado aqui como transformação, e não melhora. 99 MENÉNDEZ PIDAL, Romancero hispánico, op. cit, v. 1, p. 41 (grifos nossos) 36

  36. sujeito’, já que, em geral, o sujeito ‘sem mais’ [...] não é capaz de variar o romance substancialmente cada vez que o faz viver.”100 Os estudos “geográficos” de Pidal e Catalán demonstram que muito pouco nos romances é, realmente, inovação. As variantes em cada texto são geralmente comuns em uma determinada região: A versão de um romance que um sujeito canta em certo lugar consta de tais e tais motivos ou elementos, expressos com tais e tais variações, sobretudo porque esse sujeito reside em um lugar e não em outro.101 Daí que, se um cantor elege determinado motivo ou variante, não é uma escolha livre ou baseada apenas no valor simbólico, mas enraizada na tradição local ou naquela de seu mestre. O principal no processo de renovação dos romances são as “escolhas”: A realidade multiforme de cada poemeto se fundamenta no jogo combinatório das diversas variações discursivas e motivos narrativos próprios de cada uma das passagens que integram um relato.102 Sob esta perspectiva, os romances se ajustam plenamente à categoria dos “modelos dinâmicos”, dado que em seu programa produzem decisões sucessivas e que cada decisão depende de todas as decisões anteriores e afeta a todas as decisões futuras103. Outro dado importante é a propagação independente de variantes e motivos104 entre os romances. O fenômeno é, para Catalán, “marca essencial no mecanismo da transmissão tradicional, é a chave de como vive um romance”105. O pesquisador explica o mecanismo de migração dos motivos narrativos: Afirmamos que um elemento qualquer se propaga independentemente, porque, desligado do contexto, passa de umas versões a outras, sendo aceito e 100 CATALÁN, Arte poética, op. cit, v. 1, p. 7. 101 Ibid., p. 6 (grifos do autor). 102 Ibid., p. 15. 103 Ibid., p. 114. 104 Tomamos como “motivo” “a menor parcela temática do texto, suscetível de migrar de narrativa em narrativa, guardando sempre uma configuração reconhecível” in: REIS, Carlos, LOPES, Ana Cristina M. Dicionário de teoria da narrativa. São Paulo: Ática, 1988, p. 180. “Mínima unidade narrativa com relativa independência” in: PINTO-CORREIA, Romancero tradicional, op. cit, p. 38-39. Para Kaiser um motivo é “uma situação típica, que se repete” in: KAISER, Wolfgand. Análise e interpretação da obra literária. Rio de Janeiro: Garnier, 1958, v. 1, p. 80. 105 Ibid., p. 15. 37

  37. encaixado em conjuntos narrativos que diferem nos motivos restantes e nas variações discursivas.106 Dessa forma, apesar do conservadorismo do cantor e do público, que buscam a repetição do romance “palavra por palavra”, lembramos que um indivíduo de uma determinada região terá oportunidade, diversas vezes na vida, de escutar versões diferentes daquela que costuma cantar: estas versões forasteiras atrairão sua atenção, especialmente certos motivos ou variações isolados, seja porque se destacam, seja porque vêm a completar ou simplificar vantajosamente o relato conhecido, e, dada a semelhança com o conteúdo existente entre todas as versões de um romance, facilmente poderá deslocar estes motivos do contexto em que se encontravam e incorporá-los ao relato antigo que vivia no lugar.107 Esses são, em linhas gerais, os mecanismos de transmissão-criação do romanceiro tradicional. Essa é a tradição que serve de base a Garrett. Outros mecanismos, mais específicos, serão mencionados à medida que a análise dos romances demandar. Delineada a tradição, passa-se agora à traição, a começar por seu artífice: Garrett. 106 Ibid., p. 16. 107 Ibid., loc. cit. 38

  38. Parte II traição

  39. Capítulo 4 Garrett, o Romantismo e os Romances “O estudo do homem é o estudo deste século [...]. Coligir os factos do homem, emprego para o sábio; [...] revesti-los das formas mais populares e derramar assim pelas nações um ensino fácil, uma instrução intelectual e moral que, sem aparato de sermão ou prelecção, surpreenda os ânimos e os corações da multidão, no meio dos seus passatempos – a missão do literato, do poeta.” Almeida Garrett. Memória ao Conservatório Real Helder Macedo quem conta acerca de um professor de Português É em Oxford que teria construído sua vida acadêmica a partir de uma conferência sobre Garrett – uma única, repetida durante trinta anos – na qual apresentava o poeta como um “feixe de contradições, uma espécie de oxímoro ambulante: revolucionário conservador, romântico classicista, populista aristocrático, sensualista puritânico, moralista sem moral e assim por diante”108. À parte exageros e repetições, não há dúvidas de que esta verve paradoxal existe. Ela é um elemento importante no qual reconhecemos em Garrett um homem de seu tempo: dilacerado em revoluções políticas, morais e culturais; rico em idéias e projetos. A partir de medos do século XVIII, a Europa vive uma dupla perda: a de 108 MACEDO, Helder. “Garrett no romantismo europeu” in: Leituras – Revista da Biblioteca Nacional, n° 4, Lisboa, primavera de 1999, p. 39.

  40. um Deus que, se por um lado oprime, por outro protege e guia109; a da razão – em termos iluministas – como garantia da organização da “máquina do mundo”110. Na entrada do Novecentos, pela primeira vez livre dos cânones clássicos, a arte ingressa por um novo caminho que se costumou chamar movimento romântico. Eduardo Lourenço afirma que “se não foi o Romantismo que inventou a literatura, modificou completamente sua noção”111. No mesmo sentido, Abrams diz que a continuidade existente nas concepções poéticas, “da arte poética de Horácio à crítica do Dr. Johnson” foi quebrada pelas teorias dos escritores românticos112. Mesmo pensando na heterogeneidade do movimento113, não há como negar que, de modo geral, o Romantismo expressa esteticamente um momento de virada em toda a cultura européia, a qual viveu e da qual fez parte o jovem Garrett. O jovem Garrett Garrett nasceu no Porto, em 1799, numa “casa austera e trabalhadora”, na qual se vivia um sólido cristianismo “português-velho”, que inspirava o desejo de justiça e tolerância, mas se opunha à ética e à doutrinação política revolucionária114. Aos dez anos, enviado para Angra, nos Açores, onde seria educado sob a tutela do tio, Frei Alexandre, bispo da cidade, Garrett já mostrava a personalidade teatral e ruidosa que o faria famoso, dez anos depois, em Coimbra: “são as lutas com os companheiros nas sabatinas das aulas, a querer impopularmente afirmar a 109 “Deus [...] perdera sua visibilidade, sua presença, como referência obrigatória do imaginário do homem ocidental. A literatura, sob sua forma romântica, é a palavra de um Deus já ausente.” in: LOURENÇO, Eduardo. Mitologia da saudade. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 54. 110 Tratando do poema de Voltaire sobre o terremoto de Lisboa (1755), Baczko escreve: “O mundo concebido como um todo racional, no qual a razão humana se reconhece e onde o homem se sente em casa em qualquer lugar, era um belo edifício, uma obra erguida pelos melhores espíritos deste século. [...] Ora, dá-se que, ao reclamo de um abalo telúrico, seu [de Voltaire] grito de revolta e de desespero contra a fatalidade do mal ameaça fazer ruir esta construção magnífica, jogá-la à sombra do abismo do absurdo.” in: BACZKO, Bronislaw. Job, mon ami: promesses du bonheur et fatalité du mal. Paris: Gallimard, 1997, p. 25. 111 LOURENÇO, op. cit, p. 54. 112 ABRAMS, op. cit., preface. 113 “Haveria, com efeito, vários romantismos” in: VECHI, Carlos A. et al. O Romantismo. A literatura portuguesa em perspectiva. São Paulo: Ática, 1994, v. 3, p. 11. 114 MONTEIRO, Ofélia Paiva. A formação de Almeida Garrett: experiência e criação. Coimbra: Centro de Estudos Românicos, 1971, v. 1,p. 69. 41

  41. superioridade própria, antes que voluntariamente lha atribuam”115. O legado dos oito anos passados na ilha (1809 – 1816) imprimiu no “aprendiz de feiticeiro” – para usar o termo de Ofélia Monteiro – uma cultura singularmente vasta para sua idade, cujo pendor espiritual se filia ao Cristianismo crítico de Frei Alexandre. No plano estético, a formação de Garrett tende a valorizar a verossimilhança, a naturalidade, a coerência, a harmonia, encontrando os seus modelos predilectos nas literaturas antigas, nos franceses e italianos modernos (Voltaire, Maffei) e nos autores portugueses dos séculos XVI e XVII (exceptuados, claro, os representantes dos exageros formais barrocos)116 No entanto, é sob a tutela do mesmo tio, Bispo de Angra, que Garrett sente os primeiros influxos do sentimentalismo e do culto da expressividade e da espontaneidade: “ao considerar as finalidades da arte, colocava assim, a par do velho binômio instruir e deleitar, um insistente comover”117 Vai nascendo assim a heterodoxia, ou melhor, o “ecumenismo” estético de Garrett, inspirado pela emoção e guiado pela razão – características que o fizeram tão dividido entre dois tempos. Monteiro relata a heterogeneidade de influências na educação de Garrett – clássicas, neo-clássicas, cristãs, maçônicas, liberais, iluminadas, românticas, etc.118 – e a capacidade do poeta em absorver todas, mesmo as mais contraditórias. Na outra ponta, a da resultante literária dessas influências, Helena Buescu afirma: A heterogeneidade garrettiana é [...] uma forma fundadora de ver o mundo – apostando não na sua dimensão monolítica mas na sua real inconsistência e por vezes mesmo auto-contradição. Talvez por isso mesmo muitas das personagens mais marcantemente garrettianas resolvam os seus problemas... não os resolvendo, ou apenas justapondo outros fragmentos aos que previamente existiam. Provavelmente como Garrett – pelo menos o Garrett que se configura, obsessivamente, na obra garrettiana.119 115 Ibid., p. 72. 116 Ibid., p. 54. 117 Ibid., p. 56. 118 Dos autores clássicos aprendidos com Frei Alexandre; passando, no tempo de Universidade, por “Voltaire, Montesquieu, Rousseau, Malby, Vattel, Beccaria, ou escritores como Filangieri, Chateaubriand, M.me de Staël ou Benjamin Constant”; e chegando a “Walter Scott, Byron, Thomas Moore, Lamartine, Victor Hugo” in: MONTEIRO, op. cit, v. 1, p. 132; v. 2, p. 133. 119 BUESCU, Helena Carvalhão. “O cívico, o romântico e o afetivo: visões culturais da Inglaterra em Almeida Garrett” in: Leituras – Revista da Biblioteca Nacional, Op. cit., p. 184-185. 42

  42. Em 1816, o poeta chega a Coimbra intimamente disposto a entregar-se aos estudos de Direito. No fim deste mesmo ano, no entanto, inicia sua adesão a um mundo que vai além dos livros. Como fatores que acalentaram suas crenças e revoltas, Monteiro inclui “o descrédito em que aos seus olhos caíram os esteios da ordem tradicional, humilhações escolares e desventuras amorosas em boa parte originadas pelo código moral que a essa ordem se ligava”120. Mais ainda, Garrett vê seus ideais cristãos de responsabilidade, justiça e verdade desprezados pelos “eleitos do poder”121. Num plano mais amplo, vemos nascer no poeta um fator que iria ser pedra-de-toque do Romantismo: a inadequação do homem ao seu mundo – o indivíduo oprimido pelas forças sociais. Garrett, neste sentido, revela-se o cantor ideal dos calorosos acontecimentos da revolução de 1820. Neste mesmo ano, escreve um “Hino Patriótico”, no ano seguinte, discursos e poemas libertários nos quais cita Rousseau e Condorcet, entre outros122, além do drama Catão. Este, escrito para ser uma “tragédia revolucionária”123 revela bem a verve militante do autor. A escolha de personagem da Roma republicana, ameaçada pela ditadura de César, parecia-lhe assaz apropriada naquele momento em que o hesitante domínio vintista corria perigo. Os motivos da tragédia, o próprio Garrett explicita: paterno e o filial, a devoção cívica, o falso e o verdadeiro patriotismo, o entusiasmo cego e o ilustrado zelo da liberdade, com todas as paixões revolucionárias nos variados graus e matizes.124 É fácil notar em Garrett o homem de ideais, de projetos. Assim como seu São os mais nobres afectos do coração humano, a amizade, o amor tempo foi um tempo de lutas programáticas, sua literatura não poderia ser diferente: é engajada, política. O autor proclamava que a literatura moderna havia de ser pedagógica, esclarecendo e educando pela poesia, pelo drama, pelo romance125; 120 MONTEIRO, op. cit, v. 1, p. 168-169. 121 Ibid., p. 169. 122 FRANÇA, José Augusto. O Romantismo em Portugal: estudo de factos socioculturais. Lisboa: Horizonte, 1993, p. 38. 123 Ibid., p. 39. 124 GARRETT, Almeida. “Catão” in: Obras, op. cit, v. 2, p. 1615. 125 CHAVES, Castelo Branco. O romance histórico no romantismo português. Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1980, p. 14. 43

  43. havia de ser, ademais, exemplar. Identificava-se, neste sentido, à tendência romântica explicitada nas palavras do alemão Wilhelm von Schlegel, num texto de 1806: fantástica, de uma literatura viril, imediata, enérgica e especialmente patriótica, e de um drama histórico, compreensível por todos e representável, capaz de ilustrar épocas da história da pátria quando perigos semelhantes a ameaçavam e foram superados com bravura e heroísmo.126 Os alemães necessitam, além de uma literatura formal e de uma poesia É isso mesmo que Garrett faria com Catão e continuaria, mais tarde, com o Romanceiro. O certo é que os “perigos” que ameaçavam a revolução liberal se concretizaram. Em maio de 1823, os antiliberais pegam em armas e restauram o absolutismo em Portugal, no movimento que ficou conhecido como Vilafrancada127. Os vintistas, entre eles Garrett, acabam por emigrar – fenômeno decisivo para a história literária portuguesa e para aquela das origens do Romanceiro. O exílio no mundo romântico É Gomes do Amorim, autor da mais famosa biografia garrettiana, com o conhecimento adquirido na convivência com o poeta e a experiência da vida além- mar, que expressa o sentimento do desterro: “Não há dor, para corações amantes e sensíveis, como a que os lacera aos primeiros passos dados ao caminho do desterro. Nada mais cruel do que deixar a terra em que nascemos.”128 É desse momento de dor que nasce o romântico em Garrett – uma nova sensibilidade emerge da alma ressentida. Em passagem de seu Diário de Viagem à Inglaterra, datada de 28 de junho de 1823, escreve: Não sei que tem todavia esta idéia de terra depois de uma viagem enfadonha, que apesar de todos os desgostos, apesar da má apparencia da povoação, do tristonho do clima, e do pasmado das figuras britannico-saxonias, que me 126 SCHLEGEL apud GARRIDO-PALLARDÓ, F. Las orígenes del Romanticismo. Barcelona: Labor, 1968, p. 145. 127 MARQUES, op. cit., p. 106. 128 AMORIM, Francisco Gomes de. Garrett – memórias biográphicas. Lisboa: Imprensa nacional, 1881- 1884, v. 1, p. 289. 44

  44. rodeavam ao desembarcar, senti por um momento uma sensação de prazer indefinivel, e inintelligivel para qualquer que não o tenha experimentado.129 Talvez pressentisse o poeta uma beleza que ainda não podia entender – um tanto desfigurada, desequilibrada, despojada do “bom gosto” cartesiano. O certo é que, sem esta nova paisagem revelada no exílio, o Romantismo talvez tardasse mais algumas décadas para entrar em Portugal. José Augusto França afirma que “a poesia portuguesa, graças à emigração liberal, abria-se a novos interesses”130; e acrescenta: o “circuito que vai de David e Catão aos bárbaros de Byron e do Magriço, não poderia [...] ser cumprido no interior do país pelos poetas que permaneciam à margem dos grandes movimentos da história.”131 Chaves aponta ainda para o atraso na vida social e política do Portugal de então; o quase completo alheamento do movimento cultural e artístico europeu em que se vivia no país e do qual o português só tomava consciência quando emigrava.132 Na Inglaterra, Garrett entra em contato com um mundo novo e o gótico, antes tratado como “arte dos povos escravos”, é agora sublime, solene, digno restaurador do lugar usurpado pelo “servilismo das imitações gregas”133. No seu famoso prefácio à Lírica de João Mínimo, escrito em 1828, revela-se já o novo gosto em formação: me absorve os sentidos num gozo indefinível, num estado que não sei explicar, porque não se parece com nenhuma das sensações que os monumentos de outro gênero me excitam.134 Encontra-se aqui uma percepção estética um tanto diversa daquela das Luzes, Em geral, a arquitetura gótica é para mim um quadro de solene tristeza que do equilíbrio; uma beleza que já é, sobretudo, sugestão e sensação. Ao lado da leitura de autores como Byron e Goëthe, a experiência impunha, mais do que ensinava, que o mundo e os homens não eram tão “naturalmente bons”, que o 129 GARRETT, Almeida. Obras, op. cit, v. 1, p. 617. 130 FRANÇA, op. cit, p. 41. 131 Ibid., p. 42. 132 CHAVES, Castelo Branco. O romance histórico no romantismo português. Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1980, p. 9 (grifo nosso) 133 FRANÇA, op. cit., p. 40. 134 GARRETT, Obras, op. cit., v. 1, 1490. 45

  45. universo e as sociedades não eram como um relógio de engrenagens bem ajustadas – ao contrário, era um maquinário que às vezes adiantava, às vezes atrasava, e umas tantas outras deslocava o indivíduo para um tempo de injustiça e intolerância135. Nesse contexto, a arte perde seu estatuto universal e eterno em proveito de outro, transitório, histórico. Garrett atenta, assim, para a “íntima vinculação da obra de arte ao espaço e tempo onde brotara”.136 O espaço do poeta era seu Portugal; seu tempo, um século XIX saturado de franceses, gregos e romanos. É dessa perspectiva que Garrett infere que a verdade nacional portuguesa está escondida por trás dos “emplastros” da moda clássica: E então os ricos monumentos sepulcrais dentro e fora da igreja! – que em Inglaterra ou noutro país cristão seriam conservados com respeito e veneração de relíquias! – ali, estragados, as inscrições ilegíveis, alguns cobertos de emplastros modernos... Que vergonha, que desonra nacional! [...] E mais ainda bem que o bispo de Coimbra e o seu cabido cometeram a vergonhosa acção de abandonar a antiquíssima e veneranda Sé [...] senão já estaria a esta hora aquele interessante monumento da antigüidade estragado e desfigurado com as modernizações greco-galas que emplastram e emascaram em Portugal as mais belas relíquias da antigüidade gótica – e sueva – e romana – e grega, que de tudo isso havia por nossos templos e palácios e edifícios. Se eu tivesse autoridade pública, mandava un beau matin desemplastrar tudo isso...137 Garrett delimitou assim o âmbito do que viria a ser o primeiro Romantismo português: a proposta de dotar Portugal de uma literatura nacional e própria. Tal literatura, no entanto, não se faria em apenas “un beau matin”, era preciso encontrar imagens e formas novas e específicas: formas, esse olhar com que agora percepciona os homens, as acções e as coisas a uma luz diferente da que lhe inspirara o culto optimista da ‘Natureza augusta’. Entre o Retrato de Vênus e Camões, entre o Catão de 1821 e a versão de 1830, entre O Roubo das Sabinas e Adozinda, existe uma nova visão do mundo, que teve de exprimir-se diversamente.138 O estudo das canções populares – notadamente dos romances tradicionais – A abertura da obra de Garrett ao romantismo espelha, nos temas e nas a que se propõe Garrett é decorrente direto dessa busca de novos temas e novas 135 “Ser homem perde as conotações vintistas [...] para ganhar valores negativos, num contexto que aponta o caos no mundo, e não a ordem da augusta natureza” in: MONTEIRO, op. cit., v. 2, p. 14. Cf. BACZKO, op. cit, p. 15-24. 136 MONTEIRO, op. cit, v. 1, p. 319. 137 GARRETT, Obras, op. cit., v. 1, p. 1491 (grifo do autor) 138 MONTEIRO, op. cit., v. 2, p. 8. 46

  46. possibilidades expressivas adequadas à recuperação do “espírito português”. Tais estudos acabaram por cristalizar-se esteticamente no Romanceiro. Neste, então, deve- se poder perscrutar o processo de “romantização” vivido pelo poeta português. O nascimento do Romanceiro: um projeto estético e temático Parece haver um consenso entre os estudiosos da obra de Garrett em relação às origens do interesse do poeta pela poesia tradicional portuguesa139. O que não é difícil, já que o próprio poeta indica que foi a saudade da pátria e a leitura de ingleses e alemães como Scott, Percy, Burns e Burgër que o inspiraram na recolha das “antiqualhas”, ou seja, a idéia do Romanceiro teria emergido por ocasião de seu primeiro exílio: Lendo depois os poemas de Walter Scott ou, mais exactamente, suas novelas poéticas, as baladas alemãs de Bürger, as inglesas de Burns, comecei a pensar que aquelas rudes e antiquíssimas rapsódias nossas continham um fundo de excelente e lindíssima poesia nacional, e que podiam ser aproveitados. 140 Mais do que o testemunho de Garrett, o contexto histórico-biográfico em que se insere o poeta parece ratificar a hipótese de que a idéia do Romanceiro surge no momento crucial em que o desterrado Garrett se depara com a necessidade de novos meios expressivos. Em carta a Duarte Lessa, de julho 1824, o poeta trata da composição de Camões: Dei-lhe um tom e um ar de romance para interessar os menos curiosos de letras, e geralmente falando o estilo vai moldado ao de Byron e Scott (ainda não usado nem conhecido em Portugal) mas não servilmente e com macacaria, porque sobretudo quis fazer uma obra nacional.141 No entanto, tal poema, ainda que escrito em versos brancos e possuindo um prefácio de exortação romântica, não chega a marcar um rompimento formal com o 139 Exceto pela opinião de Luís Augusto da Costa Dias: “Para lá do estímulo que o contacto com a cultura estrangeira mais evoluída lhe trazia (como factor de aceleração evidente na maturação do processo evolutivo para o romantismo), o projecto de um Romanceiro situa-se no trânsito do vintismo para o primeiro exílio, e só depois será marcado, de forma decisiva, pelas influências de Scott, Burger, Burns, e, mais tarde, outros escritores estrangeiros.” in: DIAS, Luís Augusto da Costa. Os papelinhos de Garrett. Sintra: Câmara Municipal de Sintra, 1988, p. 23 (grifos do autor). Tal opinião, segundo a qual a idéia do Romanceiro teria surgido antes mesmo do exílio, é improvável, como pretendemos demonstrar. 140 GARRETT, Romanceiro, op. cit., v. 1, 1983, p. 60. 141 GARRETT, Obras, op. cit., v. 1, p. 1382 (grifo do autor). 47

  47. cânone clássico. Sem embargo disto, já traz a marca da nacionalidade: “o mito da pátria não encarna agora em uma divindade grega ou em um herói do passado romano, mas numa figura da realidade histórica nacional.”142 Quatro meses depois de enviar a carta há pouco citada, ou seja, em novembro de 1824, Garrett escreve novamente a Lessa, dizendo ter acabado “um poemeto em linguagem cham e corrente”, e acrescenta: Lembra-se de nossas conversas em Londres sobre as antiqualhas portuguezas e o muito que d’ellas se podia aproveitar quem de nossas legendas e velhas histórias, e tradições fizesse o que tam bem fazem inglezes e allemães, que é vestí-las de adórnos poéticos, saccudir-lhes a poeira dos séculos com bem assisada escolha e apreciado modo? 143 O poema de que fala agora é D. Branca. O projeto estilístico, a princípio, é o de recuperar as “antiqualhas” portuguesas e lapidá-las ao gosto romântico, ou seja, aquilo que seria feito no romence “Adozinda”, de 1828. No entanto, uma enorme distância separa os resultados obtidos. Os excertos que se seguem, o primeiro de D. Branca, o segundo de “Adozinda” e o terceiro de “Rosalinda”, revelam bem a evolução das estratégias (re)criativas – “vestir, adornar, sacudir a poeira” – de Garrett: D. Branca144 Aureos numes d’Ascreu, ficções risonhas Da culta Grécia amável, crença linda De Vênus bella. Vênus mãe d’Amores Brincões, Travessos; - do magano Jove ......... Já níveo touro, já dourada chuva Já quanto mais lhe apraz; – de Baco alegre Adozinda145 Onde vás tão alva e linda, Mas tão triste e pensativa, Pura, celeste Adozinda. Da cor da singela rosa Que nasceu ao pé do rio? Tão ingénua, tão formosa 142 FRANÇA, op. cit., p. 49. 143 GARRETT, Obras, op. cit., v. 1, p. 1383. 144 Ibid., v. 2, p. 467. 145 GARRETT, Romanceiro, op. cit, v. 1, 1983, p. 73 48

  48. Como a flor, das flores brio Que em serena madrugada Abre o seio descuidada A doce manhã de Abril! Rosalinda146 Era por manhã de Maio, Quando as aves a piar, As árvores e as flores, Tudo se anda a namorar Era por manhã de Maio, À fresca riba de mar Onde a infanta Rosalinda Ali se estava a toucar A sintaxe rebuscada e o metro decassílabo, heróico, a extensão do poema, dividido em cantos, fazem com que Dona Branca pouco tenha de “cham e corrente”, filie-se mais à épica clássica do que às “antiqualhas” citadas. “Adozinda” apresenta- se ainda dividida em cantos, com algumas inversões sintáticas e variação no esquema de rimas, mas seu imaginário já é marcadamente cristão, os versos mais curtos – redondilha – e a linguagem mais “corrente” – características estas bem cristalizadas em “Rosalinda”. Este não é o momento, ainda, de analisar o processo criativo de Garrett. O que deve ficar claro é que poemas como Camões e D. Branca, apesar de indicarem a aproximação aos ideais românticos e nacionalistas, são ainda almas pouco à vontade nos seus corpos – entre o projeto e a realização estética deste há alguma distância a considerar. Apenas no Romanceiro - e notadamente nos dois últimos volumes, publicados já nos anos cinqüenta - Garrett alcançaria unir aos símbolos portugueses a “voz” do povo português, com uma sintaxe simplificada, mais usual, correndo num corpo de redondilha. Outros autores importantes como Gil Vicente e Camões já haviam incorporado a cultura popular. Mais ainda, Filinto Elísio pensava em escrever uns Fastos à maneira de Ovídio, um que “desse conta de nossas festas cristãs, nossas romarias, círios, festejos que as acompanham e outros ritos que são de nosso 146 Ibid., p. 173. 49

  49. uso.”147. No entanto, apenas Garrett daria a este material o estatuto de nova estética literária, de caminho para a ressurreição nacional. Se é verdade que a procura pela forma popular se justifica pela busca de uma nova expressividade, não o é menos que também havia necessidade de uma nova fonte de imagens e mitos, de motivos poéticos. Esta fonte Garrett encontraria, como seus pares do resto da Europa, no medievo. Sobre este, comenta o autor na introdução ao segundo volume do Romanceiro, em 1851: Chamou-se a este período, tão notável e interessante da história do espírito humano, a Idade Média. Mas não foi ele, como há três séculos se escrevia, e se cria sem mais exame, não foi uma época de trevas em que toda a arte e a ciência pereceram, foi uma crise de transformação e regeneração em que os elementos da sociedade, purificados no fogo de um grande incêndio, começaram a tender para ordem nova, para uma organização que era estranha a todas as idéias e concepções antigas. 148 Note-se a diferença brutal na maneira de encarar o mundo medieval: o que era, para o Iluminismo do qual bebera Garrett, o período negro da história da humanidade, passa a ser um universo “notável e interessante”. É neste, repleto de encantamentos, reis e cavaleiros, ordenado já por uma moral cristã, pela honra e pela virtude, que os autores românticos vão encontrar suas verdadeiras raízes, seus ancestrais e seus pares. Temas como o adultério, o ciúme e o incesto149 são adotados como instrumento, não mais de análise, mas de expressão das paixões humanas, o que revela a direção tomada pelo gosto romântico. Monteiro comenta: Casos extraordinários como estes, de violência chocante a mostrar o império do mal no mundo, eram bem do apreço da sensibilidade romântica, que tantas vezes aliou a morbidez, o exaspero sensual e até o sadismo aos mais espirituais anelos.150 É sob este ponto de vista que a matéria dos romances tradicionais se enquadra tão bem no ideal romântico de Garrett: por um lado recupera formalmente uma poesia “pura” e não “macaqueada” das “estrangeirices”, seja de gregos e romanos, seja de autores modernos; por outro, carrega toda a gama de 147 Filinto Elísio apud CHAVES, op. cit., p. 11. 148 GARRETT, Romanceiro, op. cit., v. 2, p. 37. 149 É Shelley quem escreve: “O incesto é, como tantas outras incorreções, uma circunstância muito poética” in: MONTEIRO, op. cit., v. 2, p. 263. 150 Ibid., loc. cit. 50

  50. paixões humanas – quase a lista de pecados capitais: adultério, incesto, vingança, cobiça, luxúria151; a par do amor infinito, da honra, do mistério. O Romanceiro remetia Garrett a um plano passional que falava à sua mundividência de homem desenganado após lindos sonhos de virtudes e de ventura. Paixões más, cruezas e infelicidades estadeavam essas histórias [...] onde o sublime costeava o feio e o sobrenatural o imanente.152 De uma perspectiva pragmática, de autores já conscientes da necessidade de satisfazer a um público153, notamos que o caráter anedótico das narrativas, os enredos novelescos dos romances tradicionais, assim como os dos romances históricos, vinham ao encontro das aspirações de uma classe burguesa emergente que engrossava o público leitor, ávido por ilustrar-se, mas que não tinha a erudição necessária para apreciar a beleza estética de moldes clássicos.154 Por outro lado, os romances tradicionais, recriados e difundidos pelo povo, têm um conteúdo muito mais imagético, polissêmico, do que racional. E se, segundo Balzac, “o segredo da luta entre os clássicos e os românticos é dado nesta divisão natural da inteligência: aquela que opõe à ‘literatura das idéias’ a ‘literatura das imagens’”155, encontramos os romances bem alinhados com o Romantismo. Entenda-se por “imagem” uma entidade cujo sentido não pode ser completamente alcançado apenas pela razão: o sentido da imagem é ela própria, não 151 Acerca do desenvolvimento, no universo romântico, da noção de beleza no horrendo, na morte, do sublime nas perversões, ver: PRAZ, Mário. A carne, a morte e o diabo na literatura romântica. Trad. Philadelpho Menezes. Campinas: Unicamp, 1996, p. 43-63. 152 MONTEIRO, op. cit, v. 2, p. 262. 153 Em carta a Duarte Lessa, Garrett revela bem esta preocupação. Falando da composição do poema Camões, afirma: “Dei-lhe um tom e um ar de romance para interessar aos menos curiosos de letras” in: GARRETT, Obras, op. cit., v. 1, p. 1382. Em outra cartas, Garrett manifesta de modo freqüente suas preocupações com a publicidade de suas obras. Em 24 de outubro de 1851, escreve a Gomes do Amorim solicitando que este entregue os volumes recém saídos de seu Romanceiro nas redações de vários jornais, e acrescenta: “rogando da minha parte o obséquio de inserir nos annuncios o que vae minutado no incluso papel”. Mais adiante: “que o principal obséquio consiste em que os annuncios sejam impressos em letras grandes [...] e segundo o estylo dos jornaes francezes, que é abarcando as linhas da composição toda a largura da página, pelos motivos de conveniência que certamente comprehenderá”. In: DOMINGOS, Manuela D. Relações de Garrett com os Bertrand: cartas inéditas – 1834-1853. Lisboa: Biblioteca Nacional, 1999, p. 20. 154 Tratando das baladas inglesas, Pallardó afirma: “as velhas baladas possuem argumento – e não só forma e retórica como a tradição clássica – e respondem à avidez do povo pelo conto, pela anedota compreensível e vital que tinha aquele público não muito versado.” In: GARRIDO PALLARDÓ, op. cit, p. 66. 155 Balzac apud MACHADO, Álvaro Manuel. As origens do Romantismo em Portugal. Lisboa: ICLP, 1985, p. 18-19. 51

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